domingo, 8 de fevereiro de 2015

vinte e oito dias depois



Há quatro semanas que tenho andado a martelar cofragens para betonar palavras.
Começar qualquer coisa que se assemelhe ao que foi escrito ao longo da odisseia indiana é, e será sempre, um passo pesado e vertiginoso. Ainda assim, vou arriscar umas quantas frases sobre o quanto já vi e vivi nestes vinte e oito dias.

Tem sido intenso; são descargas de brita pela cabeça a baixo, inundando-me até aos joelhos e dificultando-me os movimentos. O único modus operandi é ir indo, com tempo, sem pressa, resolvendo o que tem de ser resolvido.
Primeiro foram os cartões: do banco, da biblioteca, do centro desportivo, da faculdade. Depois vieram as análises médicas e as assinaturas em livros de presenças, no contrato de arrendamento, no contrato do telemóvel e em qualquer coisa em que o meu nome estivesse, para iniciar ou finalizar o processo de receber ou bater nota. Com tudo, continuo a não ser daqui, muito menos a falar a língua ou perceber qual o ranking do farolero.
Dharma initiative. Espaços verdes e gentes vestidas de uniforme, muitas vénias e ditongos cordiais. O misto entre Death Note e Akira. Entre os jardins do campus universitário e a sua aparente serenidade e pacatez, a cidade vai-se desenrolando a quinze metros de altura, na BTS - skytrain na gíria - entre infinitos centros comerciais, ruelas, bairros de shop-houses, condomínios de luxo, jardins raros, para novamente recomeçar a mesma contagem uma e outra vez.
O sentimento é idêntico ao de encontrarmos alguém num local inesperado, na normalidade do sonho que mistura o teu cão e o teu avô em espaços por onde permaneceste quase desde que te lembras e que, com o abrir de uma porta, vão dar ao átrio da Faculdade de Arquitectura de Bangkok, ou ao espaço a que chamas de quarto novo, no piso 15 da Soi 4 de Sanam Pao.
É como aquele episódio de Sopranos em que o gabinete da Psicóloga se transforma num carrousel de personagens e actos falhados de Tony Soprano.
É comprar um bilhete para outra dimensão, tão distinta e desconcertante, que parece que vais voltar a acordar com o coração a 180bpm e os lençois suados enrolados ao corpo, com a cabeça no sítio dos pés e os pés fora da cama.
Antes de entrar no avião a cabeça estava já num outro lugar - que nem por sombras era este - e que roçava o estado dos dias que antecedem grandes acontecimentos. A ida para a escola primária, o primeiro jogo do torneio de futebol da escola (aquela noite em que imaginamos todos os passes perfeitos e o remate ao ângulo para gáudio da bancada de cimento crú), a ânsia das primeiras vezes e primeiras coisas e todo esse mágico descontrole de expectativas e dúvidas e questões patentes a isso. O que acontece como esperado e a magia do que nunca chega a acontecer com tudo o que isso tem de bom e mau.
O medo de ter medo de ficar sozinho, a dez mil quilometro de distância, que te leva a dizer que sim e a fazer uma pausa no que estavas a ver na TV da tua vida, para ir lá fora apanhar ar, só porque o dia pode estar bonito e estás trancado dentro de casa, no zapping maquinal. Vai para o quintal brincar com a violeta* mas antes come um pão com ovo para ficares forte - diria a Mariazinha. Ser convidado a tomar um banho de água gelada no tanque de Canelas, enquanto o mestre Quim jogava cartas no café central.
*quando era cadela era Violeta, quando era cão era Piloto, gato era Tico - independentemente do género do bitxo e de ser já de terceira ou quarta geração. 
Quando sais do quintal, apercebes-te de indivíduos, personagens, que já o tinham feito há mais tempo, muitas vezes, e que são felizes a vaguear, entre gentes e costumes, pressupostos outros, ideias sem nexo, vidas com razão. Compreendes que afinal os teus cojones são maiores que os de muitos mas ainda assim, bastante mais pequenos que os desses, que flutuam nas conversas sobre a vida e o que tem vindo a compreender, fruto do contacto com a informação de mil enciclopédias. Quando perguntas se muita gente aparece, a pesagem dos quilhões de navarone volta à ordem do dia; sorris mais uma vez pela valentia, para novamente o disfarçares na timidez da tua frescura: peixe fresco, fruta verde; falta ainda muito para amadurecer aqui.
É taco a taco, jogo a jogo, entre perguntas tão difíceis que nos lembram as que fomos fazendo aos nossos quando tivemos medo de falhar, ou mesmo medo de perguntar a outros que não fossem de confiar tamanhos desabafos sobre o mundo e sobre o nada.
Cheguei à Praia, num local remoto onde se criam coisas novas e pertencemos a uma nova Família, com outros transeuntes que tal como nós cá vieram ter pelo acaso, porque naufragaram algures na baía, ou porque ouviram falar, ou porque lhes haviam desenhado um mapa do preciso local do éden, ou então, foi chamamento das Sereias. Com ou sem happy ending, vegetariano ou Deutchländer - como no anuncio da televisão ou igual à cena do Bigodes no Trainspoting.
O Puxinho dizia "vamos trabalhaaar". O Banal dizia "deixa-te de filmes, tás a entrar em Paranóias". O Costa falava sempre das duas que mais parecem uma. O Hélder dizia que um gajo que via o Die Hard antes da entrega não queria saber disto para nada. O Viegas dizia que o Porto tinha o Quaresma, o Benfica tinha o Di Maria e ele tinha lá um a fazer uns bonecos e a fazer fintas com a bola.
Agora é a minha vez de tirar as mesmas ilações e a fazer-me comido de lorpa pelo que não vem na entrega. E dar exemplos muitos para tentar justificar e motivar formas de pensar e ver o espaço.

É o desconto no cartão, os pontos para gasolina, o almoço grátis ao fim de vinte pagos ou os talões guardados para descontar no IRS.

Como diria Pedro Joaquim Ribeiro: "está no carro, vai para a feira".




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