sexta-feira, 30 de novembro de 2012

ORI ORI ORI! 1

Estive enfiado no covil durante vários dias, semanas, horas sem fins nem ínicios, segundos em que a vida estagnou num segundo plano, numa redoma de vidro baço e manchado com bolores e dedadas pegajosas. Interessava produzir, reproduzindo slides e métricas das proporções dos rectângulos de oiro. Comiam-se restos dos restos dos dias anteriores, os pratos atulhavam-se na cozinha, o sofá era a cama, a cama era secretária, a retrete era máquina de lavar, a garganta estava seca de tanta ânsia e já não me recordava do som que as minhas cordas vocais produziam pois nunca mais falei com ninguém sobre alguém ou sobre alguma coisa. Um vazio total, de tudo e de qualquer coisa, funcionando ao rumo dos vagares e dos tiques nervosos, no número três da rua da torrinha, torre celestial de contacto com o aparente stress localizado de uma moleirinha sem razão.
Até que acabei quando dei por mim, e olhei pra mim acabado, acabando.
Fiz tudo aquilo que tinha de fazer e ainda mais alguma coisa que não era necessária mas achei que por motivos deveria ser feito estando tão da perfeição que tanto procurei com alento e dedicação, sem olhar a meios e sem tentar compreender o que havia ficado pelo caminho. Devia entregar a encomenda. Incluí metade da minha mão direita e outro terço da alma no processo, faz parte, acho eu, do que todo o bom trabalhador faz para com um bom compromisso de trabalho.
Enquanto olho para a televisão a debitar milhares de palavras e silabas e metáforas inteligentes por segundo quadrado, fumo um cigarro e olho o vazio do infinito que se opõe a mim. Estou exausto e ao mesmo tempo ultrapassado por um alento gigante, do género de alentos que as pessoas têm quando acabam ou começam a fazer qualquer coisa que dignifique adquirir a sua própria existência -jogando ou não no Balazar- , que lhes diga "estivestes bem", que lhes faça meter os tomates de fora da camionete feita janela e berrar para o mundo que porra é esta que não é porra nenhuma mas me faz soltar todas as gargalhadas cheias que já dei no Mundo. Ya, afinal era isso, a fidelidade fotográfica da minha existência que enchia de capacidades e probabilidades de sucesso e tudo o mais a que tinha direito.
A coluna emitiu um choque que me arrancou do cadeirão de pele escura e a cheirar a couro de consultório de oftalmologista, nafetalina e mofo incluídos e lembrei-me que estava parado com as cinzas espalhadas pela ganga das calças abaixo, sentado que estava e de boca ligeiramente aberta, como quem cola depois de uma directa, ou depois de uma boa punheta, ou de um bom final de filme de bollywood. Bem me parecia que não saia de casa há quilhões, estava taralhoco de todo, pasmaste zé?! Disse que Não bem alto e colei com UHU os pedaços de massa encefálica que havia deixado descolados pela carpete da sala.
Iluminado pela encomenda que carrego nas mãos, desço as escadas a correr, galgando de três em três os cobertores em marmorite esverdeado cor de musgo, escorregando aqui e ali na junção com o espelho e, mesmo antes de chegar ao último degrau, alias, ao primeiro, foge-me o pé-direito, aquele que é cego e remata sempre para o terceiro anel, unindo a minha cara ao frio do desgastado pavimento de entrada. Olá, estás bom? pergunto eu assim de lado, com um sorriso amarelo em metade da cara e a outra metade vermelha da pancada. Sa foda, pensei eu. Siga a marinha, que já se faz tarde. Cuspi os dentes para a palma da mão e guardei-os no bolso das moedas pretas pequenas. Mais tarde, quando fosse rico e novo, poderia dar-me ao luxo de os banhar a ouro e de fazer um par de brincos com eles.
Lá fui eu a subir a torrinha, gás colado e manco do pé esquerdo capaz de ver entre a penumbra de um ínicio de manhã de inverno, qual ao certo não sei, entre risos e berros, alcoólicos anónimos que prezo ver com euforia e sangue quente a jorrar pelos olhos. O burburinho das pessoas que tem trabalhos normais, que tem horários e pessoas que as esperam pacientemente dia após dia no conforto de um lar normal, por de entre as colchas rendadas e as porcelanas de rapozas e cães de caça no hall de entrada, normal.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

INCESSANTE GUADALAJARA p.2


De qualquer das formas, voltando ao assunto, ao tópico, ao conto sobre este pedaço de carne tatuada, suada e amolecida pelo sol, estava eu ali encostado, apreciando a movida dos subúrbios, quando recebi um pedido. Central: “60 Degollado. Algun coche?" não era bem a minha praia, mas ao invés do triste e terreno cabaret e do cheiro a malagueta torrada, ganhar a vida era o que constava na lista de afazeres do dia; "132 Rámon escuto! voy pronto". Rodei a chave, segui em direcção à downtown, ácidos ecstasy coca charros e noite e precisava de música a condizer. Carreguei no forward, estava farto da Mariachi FM, aqueles artistas de bigode nunca mudam o reportório. Estava mais numa de música índia, cena europa, américa, cena anglo-sáxonica, frança espanha e tudo. Era da moda, dava prás contas e as gordas normalmente apreciavam. Lalalalalalalalala e num instante a vida ganhou outro sentido, tudo flores e discos voadores e coisas lindas e cores maravilhosas do outro lado da janela. Era da música ou era da fuga aos subúrbios? Pouco importava, o transito caótico sorteava o acaso à sorte de buzinas e calcadelas, encostões de pára-choques, encostos de ombro, encostos de peitos, tudo valia, e a minha música maravilhosa ia saindo dos ranhosos speakers estéreo que havia comprado por meia dúzia de pesos a um ladrão amigo que os tinha roubado a outro amigo ladrão, e como ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão, perdoei-o a ele e a mim, ficando assim entre nós o que jesus e nosso senhor não tinha tempo nem paciência para saber ou resolver ou julgar. Umas colunas estéreo, logo Ele que andava tão ocupado ia lá querer saber de tamanha ninharice. "all the other kids", e lá ia eu lançado, que nem flecha, com uma belina infernal, pela Javier Mina abaixo, virei para a Avenida de Juárez e fui directo ao ponto marcado. Restaurante "El Globo". Estacionei, olhei à volta, não era normal esperar numa cidade como Guadalajara, muito menos a meio da noite, o trânsito começava a cobrar alto e tempo era dinheiro. Mirei o taxímetro, abri nova conta com horário nocturno, sempre me dava mais uns quarenta por cento, e caso o muchacho não topasse, beautifull. E começou aquela música na rádio, nem era indie nem era porra nenhuma, era do rock, pesadão, teso, forte e feio a rasgar aço. Arrotei o burrito, saquei o palito da camisa e palitei como se não houvesse amanhã. Os meus Rayban davam-me aquela pinta, estava na merda, mas no auge, se é que me entendem, nem eu sei muito bem explicar, mas sim, aquele arrepio na espinh... paaaaaaaaah!
Centenas de estilhaços invadiram o habitáculo, cortando a minha pele já de si triturada de bechigas em várias e finas camadas de outras peles avermelhadas tipo carne picada, o susto por pouco fez-me arrancar o canino à palitada, cortei a gengiva, os óculos fugiram-me do rosto, o coração saiu pela boca, mas o rádio continuou a tocar, aquele metal incandescente e venenoso, mesmo cru e badalhoco, e eu ali sentado, com a calça molhada de chichi e sem que um feijão me coubesse. E como nunca há duas sem três nem duas sem uma, um individuo apressou-se a fazer-me companhia no lugar do morto, que ainda estava vivo, e apontando uma glock polida e bem tratada, da qual não constavam sinais de "R E P L I C A" adornando o seu chassis leve e resistente, me disse "Podes seguir em frente, pé ligeiro e cautela". Ainda estava eu a recuperar do cagaço, suado que nem um frango quando vi a navalha a reluzir o sol do último segundo do último dia do último momento da única e escassa estupidificante e nervosa vida, e o individuo magro e de pele clara, cabelo cor de cenoura, óculos à John Lennon e sotaque de gringo me diz: "esta não é aquela música rock´n´roll filha da putice daqueles brits raçados de pitbull mestiço africano?" ao qual eu respondi, "São, tocam pro mundial, mas a outra malha deles é melhor. Mais negra." Nesta fase da conversa, convinha ser simpático, visto ter-me partido o vidro do pendura, entrado sem ser convidado, e ter feito sabe-se lá o quê lá atrás onde o fui apanhar, cheio de folia e ar. Mas algo me dizia que não tardava muito em saber as respostas aos meus teoremas e teorias da conspiração e já que quando era miúdo achava que essa era a melhor parte, a de saber as respostas às perguntas que sempre quis ver respondidas. Posso dizer que estava a morrer por saber mais!
Galgando passeios e avenidas, Guadalajara sorria para mim, a troçar da minha sorte, nula, logo eu que só queria trabalhar e continuar a minha rotineira e pacata vida mundana, abraçada de todos os sonhos que nunca quis para mim, dizendo adeus a todos aqueles lá ao longe já há muito se haviam tornado meros devaneios infantis. Prometi que se me safar desta, prometi mesmo, até cruzei os dedos enquanto agarrava o volante com os guizos mingadinhos e escondidinhos entre as virilhas e as cruzes e as caveiras a olhar para mim com cara de tanga lá de cima do alto do retrovisor, me ia uma pessoa ainda melhor, tentar voltar a ir à missa, jogar na lotaria, comer menos gorduras, fazer mais exercício, vender a merda do táxi, endi...
ouh!
"Vais continuar agarradinho à tua alma como se outra não tivesses ou vais fazer um bocadinho de conversa de sala ó mal educado? As visitas são para se receber bem!" ao que eu respondi "A chaleira está partida e a cafeteira está sem água, mais alguma coisa que deseje neste momento caro convidado que me partiu o vidro do táxi, entrou sem pedir licença, me apontou uma arma à moleirinha e me está a "sequestrar" temporariamente?". Ah lata do caralho, cara de cu de cenoura mal descascada... "Até ver, sou eu que aponta a arma e és tu que tens a arma junto à fonte, por isso, baixa a bolinha, guia com calma que esta merda não tem airbags e o cinto mais depressa nos decapita que ampara o tombo. Continua a seguir para norte".
Ai Guadalajara, tão bela me pareceste, em slowmotion, slide by slide, side by side, a correres do meu lado esquerdo, com o sol de poente a aparecer interruptamente na malha regular dos bairros dos ricos, outskirts americanizados, à espera de um sonho, não do meu nem do teu, do deles, dos outros, porque o meu, naquele momento passava por uma noite escura e sem pinta de lírica nocturna, ya, escura como o caralho, breu infinito e eterno, sem mesmo acreditar que iria conversar com Alpha e Omega em poucos segundos, ia apenas, para outro lugar, ou lugar nenhum, vazio celestial.
Mas ao que parece, ainda não fui. O resto? Falamos de bola e política, sendo que eu, muito moderado, disse que sim a tudo e acho que concordei com muitas coisas que o cenoura disse, nem era muito burro, nem sequer o posso julgar assim à primeira, estava apenas a fazer o trabalho dele. Estava tudo bem até um carrinha cor de melão maduro ter passado um vermelho e espetado uma grande pancada do lado do morto, que estava vivo até então mas para delírio da plateia passara a morto num ápice, degolado pelo cinto de segurança e com um tiro de glock na barriga, tripas a treparem calças abaixo, todo borradinho na sua própria gosma. Azar do caralho, nem me parece mau diabo, mas também não assumiu bem o papel de riding shotgun, primeiro porque estava com um revólver, segundo porque não me estava auxiliar e terceiro e mais importante, não estava suficientemente concentrado para não se perder com politica, gaja e bola e fazer o trabalho dele. Limitei-me a desapertar o cinto, estiquei as costas em vez do pernil, e quando ia sair do carro, meia dúzia de indivíduos encapuçados fizeram o favor de adormecer com uma pancada seca nas traseiras da nuca.
Agora? Presumo que esteja numa cave qualquer, espancado até ao tutano, nu, e não tarda estarei do outro lado.
Se tenho pena? Sinceramente, estava com mais receio de chegar a velho com Alzheimer.. comi muita carne, vi muita coisa.
Amanhã há mais.
Que sa foda o Armaguedão, esta merda é um inferno.