Está escuro. Um ruído em
constante pronunciação ecoa no meu ouvido, agudo e chato, assim me estala os
tímpanos e me rompe a concentração. Não sei por quanto tempo dormi, nem sei que
porra estou aqui a fazer, deitado e amordaçado, com o cimento a romper-me a
nuca e as ratazanas a troçarem de mim. A cabeça está partida em dois, lambo os
lábios e sabe-me a sangue fresco que ainda percorre os espaços entre a barba
espessa e farta que me envolve. Não tenho tido grande sorte, grande vida, ou
merda alguma, não têm sido dias fáceis, não me tem corrido de feição, mas
também não é que fosse caso para tanto. Hoje exagerei, ou exageraram, ou
exageraste, Cristo que já não olhas por mim há algum tempo, aliás, Eras que já
ganharam pó de tanto desconcertante consolo abandonado.
E que fiz eu? Ou de que é que me
lembro?
Hmmm.
Estava adoçado ao encosto de
tecido rompido do velho mercedes C 190 amarelo e preto, interiores com o falso
brilho dos produtos de limpeza auto, as caveiras e cruzes e cristos e avés
marias a penderem do retrovisor, o rádio a tocar baixinho na Mariachi FM,
guitarra sobre guitarra, mambo sobre mambo. As putas amontoavam-se na rua
adjacente, acenavam-me, diziam olá, cravavam um cigarro ou duas de conversa,
conhecia a grande maioria delas, entre vueltas e vueltas, quecas consentidas no
banco de trás com gordos magros velhos novos leprosos ou chulos de outras
galdérias, com ou sem a minha ajuda, com ou sem pé de dança, interessava-lhes o
meu banco de trás e interessavam-me uns pesos a mais nem que isso significasse
fazer do taxi motel, melhor, das tripas coração, literal, pau para todo o
trabalho.
Deu-me a fome, fui comer um taco
ao "Godzilla", local de paragem de indivíduos pouco receitados pela
sociedade em geral. Desde os tarados aos sequestradores, tudo por lá parava,
como moscas a pousar em carne acabada de cortar, ou restos de lixo, ou esterco
ao ar livre. Mas o fundo, e ainda que mal dizendo do serviço e espaço da
lanchonete (já chamei piores nomes a espeluncas mais apresentáveis) eu
sentia-me bem ali, aspirando a ligeiramente superior aos restantes, se por ser
condutor de táxi, taxista de minha profissão? Não. Acho que era mais pelo
simples facto de feitas as contas não ser mau diabo, não pactuar com o tráfico,
não andar atrás de criancinhas (sempre preferi as mães), não alinhar em
esquemas que trouxessem mal ao mundo, e apenas me importar fazer o meu
trabalho. Se já chulei clientes? Se já cobrei o dobro a gringos? Se já fiz
desvios sem sentido algum para ganhar mais uns trocos? Quem não o faz ou o fez?
O inferno queima o quanto mais tu quiseres que ele queime e sempre que se
arranja um pequeno bafo de ar fresco neste galinheiro onde quem não pica é
picado, quem não empurra é pisado, quem não puxa não tem, só é burro quem não o
inala. Desde que o Club Deportivo ganhasse para o campeonato por mim estava
tudo bem.
Comi um burrito e um taco e bebi
um shot de tequila, tiro no estômago fraco e débil que tenho. Fumei uma valente
cigarrada, tossi várias vezes depois de inalar aquele veneno que todos os dias
me vendiam, sempre sem brinde, mas nunca melhor. Era isto, dia após dia, e
enquanto assim fosse, nunca pior. Antes mal e vivo, que fodido e morto. Já
dizia um tio meu que entretanto morreu, bem fodido.
Guadalajara era assim, como em
qualquer parte do México - uma luta constante, um fosso entre o bom e o mau, e
quando se vivia no mau, no negro, na outra face, qualquer merda era boa para um
hombre se distrair, arejar a cabeça, encontrar um sinónimo de felicidade no
mais sujo e violento conto infantil. Meia pinga de álcool ou algo semelhante
adornado de chilli com carne arrotado com sabor a têto.
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