A musica roda alta no velhinho Sony, riscado e com autocolantes, do Sonic, da Zero, Lord ou da Skate of Mind, skateshop londrina onde me aventurei em dois mil e dois, e também parece que foi ontem.
Os carros continuam a circular pela direita, os semaforos já funcionam, as leis da fisica também parecem identicas ás que deixei em fevereiro por cá. O vento sopra, o frio aperta, o cinza do céu lembra-me a holanda. O abraço aqueceu, um corpo, uma presença fisica que aparenta distanciamento, alheio ás luzes e cheiros antigos mas novos. Fala-se Português.
Acordo perturbado, incomodado com algo. A rotina?
Não, ainda não a tenho. O telemóvel continua desligado, continuo a usar o velho/novo tmn que tinha cá para casa, ligo a quem me apetece e só deixo que me ligue quem me apeteça tambem. Parece-me justo, alias, deveria ser sempre assim.
A janela está aberta, os estores e precianas também, o copo de água na mesinha de cabeceira, a roupa da cama desalinhada e ao monte. O quarto continua virado do avesso, espaço a mais, tralha a mais que não preciso, nunca precisei mas que agora faz ainda menos sentido. As paredes continuam tatuadas, continuam com as marcas do tempo que a minha mãe quer apagar, limpar o quartinho do menino, pintar de novo para parecer novo. Não, esquece isso mãe Helena, deixa para lá os lineups, os cartazes e as fotos de guerra, o posteres de bandas e a juventude perdida que ela não vai voltar, mas desaparecer assim, sem dó nem piedade, como quem muda uma camisa ou se esquece de onde vem e o que o moldou, não é vida, será prostituição!
Desço as escadas, abro o frigorifico, que riqueza, o luxo de outrora. Um belo leite com café, pao com manteiga mimosa, a vista, o acordar com a D. Fernanda a dizer que está orada de orada, que a filha anda aflita com o marido da raça filha da puta, e que o gonçalo já anda e diz Nuno, sim, aquele que lhe ofereceu um TUCTUC amarelo que veio da india para enfeitar a prateleira do quarto mas que pronto, afinal tinha-me esquecido que era para o Gonçalo. Erro meu , claro.
Vou até á sala, ligo a televisão, faço um zapping descontrolado, mudo e mudo e mudo, e não muda nada. Continua tudo igual. O goucha continua viadinho como sempre, a colega dele continua histérica, o Jorge Gabriel continua a ver se come a Sonia Araujo e o Hermano José parece que já tem programa novo. O Unas ainda continua a fazer aquele humor apurado, tão apurado que nem ele se lembra do proposito do programa, mas também nao interessa, é o Unas. As noticias da TVI continuam o terror de sempre, e os cenários tambem, o Marcelo continua a olhar pela vida de todos menos pela dele, e parece-me que o queiros ou vai ser Heroi nacional, ou o Camelo que não se chamava Areias, simplesmente Carlos de seu primeiro nome. Mas devem faltar uma serie de coisas que mudaram e eu é que ainda não reparei nelas. Acho que vou-me embora sem reparar nelas, e provavelmente volto e continuo a não notar diferença, porque será?!
Alias, parece-me que nunca sai daqui, que um ano são dois dias e que duas semanas não passam de umas horas. Sentido estranho este do tempo.
O tempo que me leva a pensar que realmente lá não estava assim tão mal, apesar de não estar assim tão bem também. Não tinha telemóvel, ainda que só para as chamadas que desejo, nem cama, ainda que grande demais, ou quarto que tem ar respirável mas não vislumbro as estrelas.
Merda, tempo não voltes, porque se voltasses também nada seria igual nem saberia ao mesmo.
Acho que mais vale olhar para a frente, encarar o passado e marca-lo na pele, ou no coração, bem lá no fundo do peito, sorrir, deixar para trás a magoa ou a tristeza do que foi e não volta mais, pegar na broa e no presunto, comer umas sardinhas de garrafão com a familia e amigos, jogar as bilharadas no taco, beber umas minis , aproveitar o sol e o ar mais limpo de cá, estranhar a falta de ruido, os condutores educados que não buzinam na cidade, o trafico que trava nos vermelhos, ou os bois que não dão prioridade nas rotundas, as vacas que por cá continuam, mas mais impressionante que isso, aproveitar o facto de tudo realmente não sair do seu lugar, pelo bem ou pelo mal, com ou sem pó, as real as it gets.
Ninguem iria compreender.
Seria dificil de explicar, e sinceramente, aqui entre nós, nunca houve uma intenção de o fazer.
O que fora vivido, guardado na memória, quase como uma reliquia, algo intemporal que talvez nunca tenha acontecido.
Hoje, a pressão talvez seja mais forte, provavelmente se as coisas tivessem sido diferentes, se a aterragem tivesse corrido bem, se todas as forças opressoras não o tivessem encostado á parede, se os gritos interiores tivessem sido suficientes para apaziguar o ruído ensurdecedor do silêncio.
O refugio era procurado, ansiado, em todo e qualquer lado que não cheirasse a casa, depois da saudade morrer, da sede e da fome serem saciados, de tudo o que outrora fez falta não fazer mais, e pior que isso, ter perdido o sentido.
O problema é o lapso, temporal ou de memória, ninguém o saberá dizer, aquele que recoloca as coisas no devido lugar, como uma mulher-a-dias que limpa o pó das prateleiras e volta a organizar metodicamente as peças do puzzle em forma de cacos de viagens ou retratos de família ou manuscritos antigos e modernos que vão ritmando as paredes lá de casa. Ao por e repor, esse mesmo gesto, ainda que por segundos, horas, dias ou meses, em casos mais radicais referimos anos ou vidas como medidas de tempo, significa um recomeço instantâneo, como se do mesmo sitio aqueles artefactos não tivessem saído.
esta foi a musica dos Pelican, que me acompanhou durante toda uma India de descobertas, pessoais e transmissiveis, marcantes e que talvez só me aperceba da gravidade da situação quando me aperceber que é impossivel regressar á ilha.