O
céu estava limpo.
Sentia
a textura do alcatrão a percorrer a borracha mole dos pneus da bicicleta. O
vento vinha ao meu encontro, trespassando-me; estava parado, mas eu movia-me
contra ele. O sol estava a pique, os pássaros voavam em bando, as pessoas
passeavam sobre a rotina maquiavélica que tomava conta do quotidiano. Planava
harmonia: dava vontade de fechar as pálpebras, puxar o ar bem lá dentro, encher
o peito e deixar soar notas bem altas de êxtase e de alegria - abrir os braços
e encaixar na dinâmica brisa.
Por
momentos desviei o olhar para focar melhor o balão vermelho que se soltara da
mão de uma criança. Depois travei.
Agora
estou sentado numa das muitas cadeiras da esplanada que envolve o pequeno lago
dos patos. Os patos parecem-me distantes, flutuam numa dança ainda mais
desastrosa e tacanha que a habitual. E sinceramente não consigo perceber o seu
número - tem segundos em que conto seis, minutos nos quais me parecem dezenas. Procuro
nos bolsos uma réstia do pão do pequeno-almoço para lhes atirar mas apenas
meia-dúzia de moedas me acompanham.
Mas
não é isso que aqui faço sentado, sobre a sombra, à espera do meu sumo natural
de laranja. Para dizer a verdade, não recordo mais o porquê de me encontrar
aqui sentado. Os sons das pessoas que à minha volta deambulam parecem-me
murmúrios de um tempo distante, uma confusão que não compreendo porquê, não
pertence a este lugar. A ligeira impressão de estar em dois lugares em
simultâneo, num contexto cruzado. A imagem transmite-me algo que o ambiente que
me envolve não traduz. O sumo nunca mais vinha e eram horas de ir, não me
recordo da transparência pálida do relógio, mas sabia que já havia demasiado
tempo que estava sentado a assimilar as dinâmicas que à minha volta se sucediam
em catarata. Por instantes reparei que os gestos assumiam velocidades
antagónicas, como se para uma quantidade de energia aplicada outra equidistante
e antitética da primeira fosse a
resposta dada.
Levantei-me,
comecei a caminhar sem pressa nem rumo. Encontrei-me sozinho no meio de uma
dessas praças da cidade, com um cavalo de ferro montado por um ilustre qualquer
no seu centro, a sua difusa sombra desenhada no granito rijo do pavimento.
Julgara eu que o céu estava limpo e sem nuvens, mas a luz parecia começar a
escassear, um tom cinza varria o todo.
Quando
dei por mim estava ofegante, a corrida massacrava o asfalto, as pernas
martelavam que nem pistões para cima e para baixo, e eu continuava a correr,
desalmadamente perdido num vazio que me consumia, agora e sempre, dia sobre
dia, hora após hora, no negro da noite ou na luz fosca dos dias. Os poros
dilatavam e expulsavam um ácido suor, a camisa colava no peito, o peito colava
no coração acelerado e descompassado, os meus olhos semicerravam para melhor
ver ao longe mas continuava sem compreender além do que via realmente e pior do
que isso, não atingia o porquê de tamanho sprint.
Mas sabia que esse era o caminho, que tinha de continuar a correr, que não
havia outra saída senão aquela.
Um
intenso ruído manifestava-se atrás de mim. Olhei sobre o meu ombro direito,
entrei num estado de pânico ainda mais avassalador e vertiginoso. Não conseguia
contar quantos compunham a massa disforme e caótica que se movia na minha
direcção. Era tudo demasiado real, numa luta que travava comigo mesmo sem eu
próprio saber. Atropelavam-se, escalando uns por cima dos outros, outros por
baixo de alguns, a maioria correndo como loucos, arrastando em si uma força que
se multiplicava exponencialmente a cada metro percorrido. Merda! A dor de burro
estava a tomar conta da zona abdominal direita, era sufocado pelo ar que me
enchia os pulmões, mas seria ar ou qualquer outra coisa? Conveniente. Empatava-me
a respiração, aniquilava o meu poder de decisão.
Estava
finalmente perdido numa ruela calcetada e que afunilava em direcção a uma enorme
escadaria em duros blocos de granito e da qual vislumbrava uma parede azul
ciano, bem lá no fundo, ainda distante de mim. Galguei as escadas, uma a uma,
duas a duas, interessa pouco saber como, mas parecia-me mais uma escada
rolante, rolando em sentido contrário ao meu. À medida que ia tentando manter a
velocidade, sentia que já não mais sentia as pernas que me guiavam, estava
trôpego, adormecido no meu mais ínfimo interior, tentava agarrar o corrimão das
escadas que escalava mas falhava sempre, e sempre, sempre me desequilibrava
mais um pouco.
E
eles continuavam a correr atrás de mim, e já não conseguia mais contar nem uma
só cabeça que a compunha - era um conjunto heterogéneo a polvilhar, difuso, um
borbulhar de carnes e intenções, racional mas ao mesmo tempo grotesco, e o pior
é que já preenchia tudo o que havia ficado para trás, causando um desespero que
me apertava não só contra a corrida que me levava ao plano azul final, como
também espremia o meu interior asfixiado, num constante martelar ruidoso que
consumia bem lá dentro, no fundo de mim, no mais vasto e sentido medo.
E
corri. Corri como se o amanhã não fosse uma certeza, mas algo pelo qual tinha
de lutar naquele preciso momento, momento que já me esquecera qual era, qual o
seu sentido, salvação ou desgraça, vitória regada a lama e sobressaltos, derrota
recalcada pelos milhentos pés que me seguiam sem desarmar.
A
cada passo que dava, mais me afundava nos paralelos escorregadios. A chuva
começou a cair e juntamente com o suor que me escorria na testa e que me turvava
a visão, repuxos lacrimais fugiam da íris, a saliva jorrava e relançava-se no
ar pela minha boca entreaberta, mas de onde não saía uma única palavra. Era
tempo de correr, de me salvar. Porquê? Não me recordo. Mas sempre gostei de
correr, sempre que roubei um apalpão a uma miúda qualquer lá da escola, sempre
que tentei correr até à linha para cruzar para golo, sempre que me acordei mais
tarde para apanhar o autocarro ou sempre que me vi perdido no meio de meia
dúzia de pequenos delinquentes que me queriam levar os trocos e o telemóvel.
Não era este o caso agora, mas através do senso comum e do mágico poder da
analogia, penso estar em condições de dizer que esta era uma bela altura para
correr.
Uma
imagem sobrepôs-se à estreita rua, um baloiço repousava num mínimo jardim, tão
mínimo que parecia não ter espaço para o gesto prolongado e suave que o baloiço
tomava. Foram instantes apenas, incontáveis como tudo o resto, tão depressa
vieram como foram.
E o
azul era cada vez mais intenso, os murmúrios e berros e ruídos e caos lançados
sobre mim, vindos de trás, já quase roçavam no meu ouvido, pareciam até
tocar-me nas costas, desviarem-me as pernas. A camisa era já um trapo que
colado a mim manifestava e simbolizava ainda mais o desespero de uma fuga não
anunciada e na qual me vi sem assim o prever. Queria-me lembrar de alguém, de
uma imagem, de um rosto, de uma palavra, mas só faziam eco as notas industriais
entrelaçadas em pianos e sons do fundo do túnel a ressoarem nas paredes do meu
crânio, a partirem cada pedaço de textura encefálica, desespero de um grito que
teimava em não sair. Havia passos que levavam metros, outros pareciam apenas
superar meros centímetros, um vai e vem descompassado e irregular, uma espécie
de cavalgada em terreno perfurado sobre uma incessante carga de água que varria
o chão e deixava no ar o cheiro a terra molhada.
Um
bombo que me perfurava, um ritmo louco que me mantinha numa dramática e furiosa
fuga, e todos eles mais próximos, tal qual o fim da estreita e claustrofóbica
rua que espezinhava, e com esta, o muro azul ciano que agora, com a curta
distancia que nos separava, se apresentava sobre o tom verde água, estando eu
sobre a água que caia sem dó, a um ritmo amplificado pelo intenso palpitar de
tudo o que me envolvia.
Uma
nova imagem se abateu sobre mim. Um miúdo caminhava pelo passeio fora com um
gelado na mão e à semelhança do que nesse momento se passava, também o miúdo
não conseguia pronunciar qualquer palavra perceptível. Ao andar, uma perna
atrapalhou a outra e na ânsia de agarrar o gelado, a testa foi de encontro ao
cimento em esquadrilha do passeio.
Mas
eu ia salvar-me, trepar o muro, ganhar tempo, escapar de um tsunami de gentes que teimavam em não me
largar e que a centímetros de mim, numa infernal e estridente parafernália de
sons e ruídos, me despedaçavam aos poucos, retirando-me o pouco equilíbrio que
me restava. Vertiginoso escape de sentimentos e adrenalina, já não ouvia mais a
minha silenciosa respiração, o ambiente era demasiado alto, numa escala anormal
e sem proporção aparente.
Escorreguei
finalmente, e ao contrário do que a minha mais infinita vontade desejava,
réstia de esperança encharcada em sangue, suor e lágrimas, o sentido descendente
contrariou o ascendente e o meu corpo projectou-se na direcção do verde-água do
muro. A rugosidade da pedra pintada fixou-se em mim, e a minha retina reteve-se,
bem aberta, no encontro entre o meu crânio e a barreira que a si se empunha,
esmigalhando em pedaços geométricos que em nada se assemelhavam à clássica
massa disforme e de cor rosa que julgamos compor o cérebro quando uma situação
deste género acontece.
O ar
entrou de rompante, preencheu-me, abri uma segunda vez os olhos focando o
infinito.
Uma
claridade imensa me suprimiu num cruzamento franco entre o melhor orgasmo e o
espasmo do vómito que se acumula e anseia sair, possuindo-me assim por completo,
num arrepiado esgar da espinal medula que me elevou no ar, os cateteres rasgaram
os braços e esse emaranhado de fios transparentes e avermelhados, como cabelos,
envolveram-me no seio do tecido branco que me adornava. O vermelho pontilhou o
algodão, pintas e mais pintas de uma cor forte e viva, era aliás, tudo
surpreendentemente real e intenso, ainda que desfocado e sem profundidade.
A
espuma percorria-me o canto da boca, deslizando sobre a vasta barba seca e áspera
sobre a qual uma sonda repousava. O ar era puro demais: fresco como o gelo,
cortante e redentor.
Estava
sozinho e fechado num espaço esverdeado e baço, num vácuo no qual eu sugava o
seu interminável oxigénio e as pétalas secas de um vaso repousado na pequena
mesa ao meu lado assistiam impávidas e serenas, ao meu alucinante renascimento.
Um Conto de Ivan Coelho
para um concurso,
algures em 2011.