sábado, 30 de junho de 2012

O FRÁGIL



O céu estava limpo.
Sentia a textura do alcatrão a percorrer a borracha mole dos pneus da bicicleta. O vento vinha ao meu encontro, trespassando-me; estava parado, mas eu movia-me contra ele. O sol estava a pique, os pássaros voavam em bando, as pessoas passeavam sobre a rotina maquiavélica que tomava conta do quotidiano. Planava harmonia: dava vontade de fechar as pálpebras, puxar o ar bem lá dentro, encher o peito e deixar soar notas bem altas de êxtase e de alegria - abrir os braços e encaixar na dinâmica brisa.
Por momentos desviei o olhar para focar melhor o balão vermelho que se soltara da mão de uma criança. Depois travei.
Agora estou sentado numa das muitas cadeiras da esplanada que envolve o pequeno lago dos patos. Os patos parecem-me distantes, flutuam numa dança ainda mais desastrosa e tacanha que a habitual. E sinceramente não consigo perceber o seu número - tem segundos em que conto seis, minutos nos quais me parecem dezenas. Procuro nos bolsos uma réstia do pão do pequeno-almoço para lhes atirar mas apenas meia-dúzia de moedas me acompanham.
Mas não é isso que aqui faço sentado, sobre a sombra, à espera do meu sumo natural de laranja. Para dizer a verdade, não recordo mais o porquê de me encontrar aqui sentado. Os sons das pessoas que à minha volta deambulam parecem-me murmúrios de um tempo distante, uma confusão que não compreendo porquê, não pertence a este lugar. A ligeira impressão de estar em dois lugares em simultâneo, num contexto cruzado. A imagem transmite-me algo que o ambiente que me envolve não traduz. O sumo nunca mais vinha e eram horas de ir, não me recordo da transparência pálida do relógio, mas sabia que já havia demasiado tempo que estava sentado a assimilar as dinâmicas que à minha volta se sucediam em catarata. Por instantes reparei que os gestos assumiam velocidades antagónicas, como se para uma quantidade de energia aplicada outra equidistante e antitética  da primeira fosse a resposta dada.
Levantei-me, comecei a caminhar sem pressa nem rumo. Encontrei-me sozinho no meio de uma dessas praças da cidade, com um cavalo de ferro montado por um ilustre qualquer no seu centro, a sua difusa sombra desenhada no granito rijo do pavimento. Julgara eu que o céu estava limpo e sem nuvens, mas a luz parecia começar a escassear, um tom cinza varria o todo.
Quando dei por mim estava ofegante, a corrida massacrava o asfalto, as pernas martelavam que nem pistões para cima e para baixo, e eu continuava a correr, desalmadamente perdido num vazio que me consumia, agora e sempre, dia sobre dia, hora após hora, no negro da noite ou na luz fosca dos dias. Os poros dilatavam e expulsavam um ácido suor, a camisa colava no peito, o peito colava no coração acelerado e descompassado, os meus olhos semicerravam para melhor ver ao longe mas continuava sem compreender além do que via realmente e pior do que isso, não atingia o porquê de tamanho sprint. Mas sabia que esse era o caminho, que tinha de continuar a correr, que não havia outra saída senão aquela.
Um intenso ruído manifestava-se atrás de mim. Olhei sobre o meu ombro direito, entrei num estado de pânico ainda mais avassalador e vertiginoso. Não conseguia contar quantos compunham a massa disforme e caótica que se movia na minha direcção. Era tudo demasiado real, numa luta que travava comigo mesmo sem eu próprio saber. Atropelavam-se, escalando uns por cima dos outros, outros por baixo de alguns, a maioria correndo como loucos, arrastando em si uma força que se multiplicava exponencialmente a cada metro percorrido. Merda! A dor de burro estava a tomar conta da zona abdominal direita, era sufocado pelo ar que me enchia os pulmões, mas seria ar ou qualquer outra coisa? Conveniente. Empatava-me a respiração, aniquilava o meu poder de decisão.
Estava finalmente perdido numa ruela calcetada e que afunilava em direcção a uma enorme escadaria em duros blocos de granito e da qual vislumbrava uma parede azul ciano, bem lá no fundo, ainda distante de mim. Galguei as escadas, uma a uma, duas a duas, interessa pouco saber como, mas parecia-me mais uma escada rolante, rolando em sentido contrário ao meu. À medida que ia tentando manter a velocidade, sentia que já não mais sentia as pernas que me guiavam, estava trôpego, adormecido no meu mais ínfimo interior, tentava agarrar o corrimão das escadas que escalava mas falhava sempre, e sempre, sempre me desequilibrava mais um pouco.
E eles continuavam a correr atrás de mim, e já não conseguia mais contar nem uma só cabeça que a compunha - era um conjunto heterogéneo a polvilhar, difuso, um borbulhar de carnes e intenções, racional mas ao mesmo tempo grotesco, e o pior é que já preenchia tudo o que havia ficado para trás, causando um desespero que me apertava não só contra a corrida que me levava ao plano azul final, como também espremia o meu interior asfixiado, num constante martelar ruidoso que consumia bem lá dentro, no fundo de mim, no mais vasto e sentido medo.
E corri. Corri como se o amanhã não fosse uma certeza, mas algo pelo qual tinha de lutar naquele preciso momento, momento que já me esquecera qual era, qual o seu sentido, salvação ou desgraça, vitória regada a lama e sobressaltos, derrota recalcada pelos milhentos pés que me seguiam sem desarmar.
A cada passo que dava, mais me afundava nos paralelos escorregadios. A chuva começou a cair e juntamente com o suor que me escorria na testa e que me turvava a visão, repuxos lacrimais fugiam da íris, a saliva jorrava e relançava-se no ar pela minha boca entreaberta, mas de onde não saía uma única palavra. Era tempo de correr, de me salvar. Porquê? Não me recordo. Mas sempre gostei de correr, sempre que roubei um apalpão a uma miúda qualquer lá da escola, sempre que tentei correr até à linha para cruzar para golo, sempre que me acordei mais tarde para apanhar o autocarro ou sempre que me vi perdido no meio de meia dúzia de pequenos delinquentes que me queriam levar os trocos e o telemóvel. Não era este o caso agora, mas através do senso comum e do mágico poder da analogia, penso estar em condições de dizer que esta era uma bela altura para correr.
Uma imagem sobrepôs-se à estreita rua, um baloiço repousava num mínimo jardim, tão mínimo que parecia não ter espaço para o gesto prolongado e suave que o baloiço tomava. Foram instantes apenas, incontáveis como tudo o resto, tão depressa vieram como foram.
E o azul era cada vez mais intenso, os murmúrios e berros e ruídos e caos lançados sobre mim, vindos de trás, já quase roçavam no meu ouvido, pareciam até tocar-me nas costas, desviarem-me as pernas. A camisa era já um trapo que colado a mim manifestava e simbolizava ainda mais o desespero de uma fuga não anunciada e na qual me vi sem assim o prever. Queria-me lembrar de alguém, de uma imagem, de um rosto, de uma palavra, mas só faziam eco as notas industriais entrelaçadas em pianos e sons do fundo do túnel a ressoarem nas paredes do meu crânio, a partirem cada pedaço de textura encefálica, desespero de um grito que teimava em não sair. Havia passos que levavam metros, outros pareciam apenas superar meros centímetros, um vai e vem descompassado e irregular, uma espécie de cavalgada em terreno perfurado sobre uma incessante carga de água que varria o chão e deixava no ar o cheiro a terra molhada.
Um bombo que me perfurava, um ritmo louco que me mantinha numa dramática e furiosa fuga, e todos eles mais próximos, tal qual o fim da estreita e claustrofóbica rua que espezinhava, e com esta, o muro azul ciano que agora, com a curta distancia que nos separava, se apresentava sobre o tom verde água, estando eu sobre a água que caia sem dó, a um ritmo amplificado pelo intenso palpitar de tudo o que me envolvia.
Uma nova imagem se abateu sobre mim. Um miúdo caminhava pelo passeio fora com um gelado na mão e à semelhança do que nesse momento se passava, também o miúdo não conseguia pronunciar qualquer palavra perceptível. Ao andar, uma perna atrapalhou a outra e na ânsia de agarrar o gelado, a testa foi de encontro ao cimento em esquadrilha do passeio.
Mas eu ia salvar-me, trepar o muro, ganhar tempo, escapar de um tsunami de gentes que teimavam em não me largar e que a centímetros de mim, numa infernal e estridente parafernália de sons e ruídos, me despedaçavam aos poucos, retirando-me o pouco equilíbrio que me restava. Vertiginoso escape de sentimentos e adrenalina, já não ouvia mais a minha silenciosa respiração, o ambiente era demasiado alto, numa escala anormal e sem proporção aparente.
Escorreguei finalmente, e ao contrário do que a minha mais infinita vontade desejava, réstia de esperança encharcada em sangue, suor e lágrimas, o sentido descendente contrariou o ascendente e o meu corpo projectou-se na direcção do verde-água do muro. A rugosidade da pedra pintada fixou-se em mim, e a minha retina reteve-se, bem aberta, no encontro entre o meu crânio e a barreira que a si se empunha, esmigalhando em pedaços geométricos que em nada se assemelhavam à clássica massa disforme e de cor rosa que julgamos compor o cérebro quando uma situação deste género acontece.
O ar entrou de rompante, preencheu-me, abri uma segunda vez os olhos focando o infinito.
Uma claridade imensa me suprimiu num cruzamento franco entre o melhor orgasmo e o espasmo do vómito que se acumula e anseia sair, possuindo-me assim por completo, num arrepiado esgar da espinal medula que me elevou no ar, os cateteres rasgaram os braços e esse emaranhado de fios transparentes e avermelhados, como cabelos, envolveram-me no seio do tecido branco que me adornava. O vermelho pontilhou o algodão, pintas e mais pintas de uma cor forte e viva, era aliás, tudo surpreendentemente real e intenso, ainda que desfocado e sem profundidade.
A espuma percorria-me o canto da boca, deslizando sobre a vasta barba seca e áspera sobre a qual uma sonda repousava. O ar era puro demais: fresco como o gelo, cortante e redentor.
Estava sozinho e fechado num espaço esverdeado e baço, num vácuo no qual eu sugava o seu interminável oxigénio e as pétalas secas de um vaso repousado na pequena mesa ao meu lado assistiam impávidas e serenas, ao meu alucinante renascimento.


Um Conto de Ivan Coelho




para um concurso,

algures em 2011.

domingo, 24 de junho de 2012

MONTE SINAI

Estrebuchei entre o edredón na sala, sobre o colchão, à frente da tv que ficara ligada nos desastres de aviões do National Geografic.
O Cruz acenava-me com wugazi a tocar no meu celular, era o ricardo.
- Tou! como é?
- É para ir. Estou na Galiza, quatro piscas.Acordei-te?
- Não. Já vamos.

Meio morto e meio vivo, arrepiei caminho por entre as luzes amarelas, os reflexos dos semáforos no alcatrão, os néons, os anúncios, o deserto urbano, desliguei a sofagem que já ia em quarta vitesse e apanhei um leitão e dois coelhos pelo caminho.

Iamos à vandoma, fazer negócio, comprar artigos de marca, frança espanha e tudo o que tinhamos direito.

Estacionamos perto da Batalha, vesti o casaco de ganga, puxei do carapuço, larguei a carteira no "tabelier" e peguei em meia dúzia de moedas para meter ao bolso. Descemos as ruas, passamos pelo Monte Sinai, bom presságio. Chegados às fontainhas, percebemos que ainda era cedo e a caravana estava para passar. Havia que esperar, olhar para os montes de canetas e canecas e porta-chaves e ferros de engomar e VHS e discos e cds mapas e livros de todos os jeitos cores e feitios, cacos da sala de estar, pratos da mesa de jantar, peças de cerâmica e cristais baços do tempo, havia lugar para tudo, sem estarem de nível com a inclinação ou de nível com a descida financeira que se avistava. Eram trapos, eram rostos escondidos entre plásticos e cobertores, mingados pelo frio, pela vontade de fazer uns cêntimos. Rostos apagados pelos tempos, esquecidos pelos outros, em segundas e terceiras oportunidades que davam aos mesmos e às mercadorias, trocas e trocas, vendas e revendas, prendas de casamentos que já haviam vindo e ido, tal qual os euros da carteira.
E havia os outros, os do rádio que nunca tinha sido usado, da máquina de barbear sem caixa porque tinha apanhado chuva e estava húmida e foi para o lixo, ou do jogo que estava dentro da consola, dos discos a dois euros que eram do Pai do outro, das colunas que ainda ontem tinham sido ligadas à televisão para ver o jogo de Portugal. Enfim, um sem fim de contos e estórias e fábulas artísticas, romanceadas meia hora após meia hora, até o sol raiar, até não haver mais força para aguentar, verdadeiros hinos ao lirismo popular, sem desgaste, sem uma pinta de mentira a pairar, sem vergonha ou hesitação. Era o que era, e o que não era, passava a ser.
Regateamos. Perguntamos. Conversamos. Até as seis da matina darem conta do tempo passar, já de dia, num carrossel de sobe e desces, pagando para ver, vieram os jeans e a camisola de um adepto croata que em dois mil e quatro se esqueceu de ir dormir ao hotel e ficou pela baixa, de calças para baixo e tronco nu.

Viemos embora, cansados que dói.
A ilusão é tanta, que depois de circulos e circulos encontramos aquilo que não fomos lá para encontrar, mas por força das forças, o que tem de ser tem mais força ainda, acabamos por levar, por meia dúzia de paus, animados pela poupança, pela oportunidade, pela sorte, e pela vontade de encontrar mais outra coisa que precisamos mas não sabemos. É isso, e bastante mais, é palpável, mas também é placebo.

Sabe a golo e como tal, Sexta-feira há mais.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

IF ONLY WE COULD FLY



Não há quem tenha feito mais.
Há quem tenha feito menos, ou talvez nem isso, toda a gente pregou um prego serrou com o serrote aparafusou com o berbequim da black and decker, colou com a cola branca, segurou puxou empurrou tirou barrotes e barretadas, ripas e ripadas enquanto a musica era ripada, fixou e empenou, nivelou e criou.
Há coisas incríveis, pela força de alguns, pela vontade de todos.
No inicio era um camião com madeira.
No fim, uma peça com imensos nomes gravados, de artesãos a carpinteiros, mirones, mulheres da fruta, homens do prego, serras em riste, suor em bica, bikini girls with pressureguns, todos ao molhe, fé no Deus do Norte.
Serrim no nariz, maçã encravada nos dentes, arroz malando no bucho e a pele queimada.
É como a volta a Portugal em bicicleta, mas melhor.
Ou como levar com a poeira do rally etapa de Abragão, mas melhor.
Ou como ganhar aos matraquilhos, mas melhor.
Ou como jogar ao esconde esconde e ficar até ao fim e esperar até rebentarem a bolha, mas melhor.
Ou como ir para a praia comer massa com atum e beber Alandra e se calhar ainda é melhor.
Ou como dar a volta ao mundo até milão e ainda é melhor.
Ou como comer um gelado debaixo de uma árvore numa tarde de verão, mas melhor.
Ou correr à chuva com o guarda-chuva debaixo do braço, sujeito a cair e partir os dentes mas ainda assim continuar a correr à chuva e a cagar para o guarda-chuva, e é melhor, acreditem que é melhor.
E ficar no escuro a olhar para o tecto e ouvir aquela música com uns sennheiser HD-25 II, talvez seja melhor.
E comer um pão com manteiga que o padeiro deixa pendurado todos os dias desde que me conheço, uns dias mais duros que outros, acompanhados pelo café da cafeteira que tem aquele sabor com mais de vinte anos, e ainda assim, tenho as minhas dúvidas que não seja melhor.

Basicamente, comer com as mãos, beber com as mãos em concha, escrever com uma bic, desenhar com os dedos, fazer bolinhas com escupe, saber as horas pelo sol, martelar pregos, serrar barrotes de madeira de pinho, erguer vigas e prumos e outras coisas, será sempre melhor que passar horas sem fim sem fazer nada disto ou a fazer todas as outras coisas que fazemos todos na grande parte dos dias e horas e meses e segundos e na vida e no mundo.
Todo.


Como diria o Zahovic ao Américo, Puta Caralho
(foi bom pra xuxu).






if only we could flaaaaaaaaa