terça-feira, 25 de dezembro de 2012

TERRIBLE LOVE



Acordei ressabiado. Era cedo, estava cansado, vinha de noites de seis horas e tinha de ir à garagem receber a máquina de finos. Paguei os barris, o Cruz ajudou a carrega-los. Era um salto de fé. Partia para o jogo sem partir o baralho e já baralhado de tantas voltas que aquela merda podia dar. Era mais um ano, somado aos outros sete com uma dúzia de meses de intervalo.
Rebatemos os bancos, deitamos a menina, que se esguichou nos estofos, deitou espume a cheirar a cerveja para pouco do meu alívio. Deixa arder, pior ainda pode ficar, mas não é já. Desistir ali era como sair de casa e mal pousar o pé na carpete roçada da entrada, dar a volta e vir para trás.

Not my type.

Cheguei a Penafiel, depois de acordar a Ana e de atulhar o saco com as roupas sujas da semana,  de lhe dizer que era hora de ir até Luzim, estrada fora, ver como se ia fazer a festa, apontar o sítio daonde lançariamos as canas sem canaviais mas com cabana.

Dividimo-nos por carros, e mal dei à chave no meu cinza rato, começa um cd que nada tem a ver com os decibéis do sábado mas que por ironia de todas as dúvidas se chamava "Terrible Love" dos National. Não era muito fã, mas hora após hora e quilómetro atrás de quilómetro lá me fui habituando a trautear e solar como quem vai com o chuveiro no lugar do apoio da cabeça A4 adentro, rotina dentro rotina fora, ontem e antes de ontem. E no nevoeiro, a passar à frente da P3, lembrei-me do quão rídiculo e imperfeito era ano após ano estar nervoso e a fazer as mesmas contas de cabeça dia após dia, paga ou não paga, vem gente ou não vem gente, e naquelas nótitas alegres que rezam a solidão destes momentos, animou-me a crença e perseverança  Evidente que não deixei de estar "des"stressado como o caralho. Era só para enganar.

E lá segui as curvas que levavam a Luzim, e apreciei as folhas de plátanos a cobrir o alcatrão, os ganchos à Colin McRae 2 no PC, as descidas que nunca mais acabavam, a máquina que não parava de ganir na carrinha comercial improvisada, e aí comecei a recear a loucura da demanda, sempre que me parecia que era já a seguir e me enganava. Tinha a impressão que era mais perto e que já devia ter passado. Rais ma foda, afinal era mais longe... dá-lhe outra.

Mas depois de todos chegarmos a Luzim, ao fim do mundo, para a festa do fim do mundo e sem certezas se era o ínicio de um Natal mais magro ou de um pédemónio, abrimos a casa, pousamos os barris, ligamos as tomadas e as luzes e carregamos os móveis da sala de estar, pitoresco âmago de artes e paixões e reflexões de quem ali vive serões e tardes completamente alheado de todos os outros e quaisquer mundos que possam ou não existir, na Terra ou no Universo. Naquelas mesas em mármore, pesadas como os anos, na ardósia preta dos quadros da primária da sala de estar, nos candeeiros de tecto que se desenham com linhas de cabos pretos entrelaçados com as telas e as imagens de férias em família e livros de verão e de inverno, de Nietzsche a Tolstoi. E nas cores primárias das janelas e das portas, seja na cozinha ou na zona da retrete, onde as tubagens de inox realçam o chuveiro e o toalheiro, a arquitectura do senso comum ajuda a dizer "Olá seja bem-vindo".

E eu, lembrando os anos em que o Sr.José nos recebia assim no CCC, da Sãozinha a vender minis no bar, do Fernando a ajudar a carregar as paletes com Assado feito pela Mariazinha no forno a lenha, penso no quanto a coisa mudou em quase dez anos. Lembro-me também do Sr. Adão a abrir as caves do pavilhão e a dizer para usar e abusar. E depois há aquelas imagens dos ensaios em santa marta, ora em casa do Greever e depois nos avós do Pedro. E os ensaios em Santa Luzia, agora na Aveleda, de manhã ou de madrugada, enquanto a malta vai para o Electro Dance Floor nas pisssinas. E das primeiras malhas às tacadas no Taco é um tirinho, depois vem os gigs no Ribeirinha e no Altar, as idas a Lisboa e Almada para tomar uns canecos estar com os suspeitos do costume e só depois tocar.

E soube bem, ver o Telmo e o Hugo e o Mané e o Tolo noutras bandas, a soar bem para xuxu, a fazerem malhas que eu gostava que fossem minhas, sendo dignas de figurarem no nosso grupo de bandas favoritas, e depois tocar, naquela sala pequena mas boa que chegue para as dúzias que lá ficaram, pertinho do rio, até que o Luís e o Cana se fartassem, com os figurinos e os amigos e as personagens perdidas no meio do espaço de estar, ou no meio do vazio, a abanar a cabeça como se não houvesse a manhã cedo que tardou a chegar.

E se tantas vezes ao longo destes anos tenho ouvido falar em rock e metal e hardcore, e em valores e sentimentos e partilha, é o suor dos nossos que tenho visto a pingar no chão, em cada pancada no ride e no crash e na tarola e nos pickups das guitarras e dos baixos e marteladas nos dentes e santolas na nuca sem que a toalha vá ao chão, sozinhos ou acompanhados mas sempre com a cremalheira arreganhada e a alma leve que nem passarinha, figuram no meu dicionário como seu significado.

E o resto? O resto é o mais importante, feito pelos que apareceram e vibraram e berraram e agitaram até onde deu. Aos que no dirigiram as palavras de consolo e que disseram que tinha sido do caralho e valido a pena e demais e do outro mundo do fim do mundo deste e de outros e que iam regressar e que tínhamos de voltar a fazer e tentar não deixar morrer e se tinham perdido ao ir para lá mas lá encontraram aquilo que procuraram afinal ali tão perto,
muito agradecido

Gui e Família Aragão, sincero obrigado por nos deixarem violar o vosso espaço sagrado, percorrer as vossas memórias e entrar no privado do vosso retiro. Parece-vos tão pouco mas é tanto tanto que nem há palavras.

Ana, Beto, Inês, Paulo Massa, Joana, Bisonte, Jesse, Stepback!, Direwolves, Wechoose, Pintado, Luzes do tits e da Tarreca. é nóis

# quote de uma músida de X-Acto que todos citam quando falam estas merdas, depois de recitar os National e violado os trâmitos do expectável na cena.

sábado, 1 de dezembro de 2012

ORI ORI ORI! 2


Fartei-me de esperar pela perna esquerda e desatei a correr por cedofeita a dentro, e quase a passar a rua do setenta e sete um individuo atravessou-se à minha frente, a ler o Metro enquanto comia um panike ainda meio arrefecido entre os dentes afastados, dentes de mentiroso, que levava na cremalheira. Já não bastava ser um inocente que lê jornais gratuítos e que faz o sudoku enquanto vai no 200 para a praça do Império, ainda tinha de me dizer que a culpa havia sido minha e que tinha de lhe pagar um panike novo e pedir desculpa. Não fui com a cara do individuo - era mal-educado, mais seboso que eu e lia jornais gratuitos distribuídos em semáforos ou à saída de São Bento, razões mais que válidas para lhe encher a maleta - e como já ia atrasado, decidi tratar do assunto à moda antiga. Pousei o embrulho na calçada à Portuguesa, puxei um trago de ar fresco, perguntei-lhe que mancha era aquela que me fitava na zona da coxa, e enquanto o morcão perguntava "Úcuee?" puxei a canela atrás, cravei-lhe um sopapo entre o joelho e a coxa, rodando bem a cintura, certificando-me que a força sinética aplicada era suficiente para partir alguns ossos e ossinhos. O esgar de dor surpresa misturados com um subtil pedido de compaixão de quem leva e não dá, confesso que por momentos me fizeram pensar recuar, momentos esses tão fugazis que não passaram muitos milésimos de segundo até que os meus nós da delicada mão direita que constituí o término do meu braço e que outrora tocou guitarra portuguesa, sentissem o maxilar deslocar-se no ar, com um seco clique, do mesmo género dos cliques que as peças das pilhas dos comandos de televisão fazem quando encaixam no molde de plástico normalmente escuro, produzido nos confins das chinas e taiwans.

Peguei no embrulho e lancei-me cedofeita acima, Carlos Alberto dentro pelo lado de fora, com as fachadas a reluzirem as chuvas da noite e do dia anteriores, limpas da sua sujidade entre pastilhas e azulejos e rebocos mal amanhados, entre umas mais empenadas que outras, lojas de pronto-a-vestir, restaurantes tascosos e outras coisas mais ou menos levianas que iam chocando contra o meu olhar, lá eu fui caminhando, galgando calçada portuguesa ao encontro da minha entrega. A entrega.

Os Leões, mirei-os, frente-a-frente, olhar no olhar, tomates com tomates, garra sobre garras e cabeça bem levantada a fazer frente aos supra-sumos, sem medos, sem receios, apenas vontade, liberdade infindável de quem nada tem e sendo assim absolutamente coisa nenhuma pode perder, hoje e sempre, amén. Calquei os copos dos finos e das loiras que os deixaram a apodrecer por centenas de milhares de anos entre os granitos do Porto, da nossa invicta de dois mil e um odisseia espacial, invictus e como novos, prontos a reutilizar com os três Rs do mundo refeito e melhor, mais bonito e mais limpo, civilizado e correcto, pronto a receber e a dar, encarando a nova ordem no meio de uma tempestade de mudanças ocas e sem sentido, lobbies que teimam em permanecer bem presentes ao acordar e ao deitar.

Quando dei por mim já tinha passado as galerias do cabrão do Charles de Gaule, as de Paris de la France, das obras e das empregadas de limpeza, dos nossos que lá foram para os caixotes do lixo, dos colegas que agora vão porque por aqui não podem ir, e assim por aí fora, num carroussel bonito como as fronhas dos alemães e dos outros , aqueles que nos deixam viver com com Ivas e taxas sociais únicas e hipotecas para pagar daquele carro que nunca saiu da garagem mas que é peça de colecionador, mais caro que os rolex de custóias, elefante branco das confeções e das CEEs e das batatas que ficaram por plantar quando nos pagaram para não içar as velas e para não levantarmos a cu do sofá porque os Jogos sem Fronteiras e o Olávio Climaco estavam na RTP em directo internacional. E com tanta vitesse que levava, pelos clerigos escorreguei num paralelo mal amanhado por um calceteiro, talvez até de Rãs, terra perto da terra dos meus queridos avós, deslizando sobre lajetas e chicletes e escarros do chão até à extremidade inferior de um rolante de autocarro , o 78, que me relou os dedos dos pés, frios do frio que se entranhava derme adentro, sem dó, sem piedade, sem misericórdia, sem pena do desgraçado que apenas queria trabalhar, uma razão de ser, o motivo da vida eterna e do apocalipse da minha existência...consegui soltar um "ui", e o motorista berrou e toda malta gritou aperta aperta com ele, mas eu apenas berrei prá puta que vos parei, aperta aperta com ela. E sendo assim naveguei entre pessoas admiradas e curiosas que viam o meu naco de carne raspar no chão, sem noção de tracção ou apoio, a flutuar. Caminhei e caminhei, procurei no meio das gentes, em zigue e em zague, em silver em mount e em zion, ansiando e desesperando pelo número sessenta e nove da rua do Sá da Bandeira, aonde eu poderia entregar finalmente e não antes que nunca fosse tarde, o último esgar de sentimento isolado por de entre as horas infindáveis de solidão e loucura na Torrinha, da torre com vista para o infinito do paralelismo entre o cosmos e o éden, jardins infiváveis do meu desespero perfeccionsta sem maçãs e serpentes.
E neste modo automático do racional imperfeito, quando encontrei o micro-cosmos da campainha e toquei até que dissesssem que sim. O trrrrr da porta ditou o entrusamento entre mim e o patamar de entrada, entrando sem pedir licença com a ansia de quem sobe a montanha russa, resfatelando na vontade da missão cumprida, sem espinhas e sem dramas, certo e seguro do que me levava alí. Como o triplo perfeito do último periodo do derradeiro jogo do play-off.

Bati à porta, olhei olhos nos olhos de quem já sabia o que esperar e o que querer, pousei amassado embrulho de papel roçado e cheio de pingas da chuva, caixa de uns sapatos velhos com o equilíbrio e perfeição da tempestade atlânte que se abate sobre o alcatrão preto de uma metrópole desgastada.
A mulher mais linda que eu já vi abriu-a, desabotando o embrulho com enorme delicadeza, colocando-o depois de o dobrar, no bolso de trás numa daquelas Levis em sgunda mão que deixam o cu empinado para fora.
E no palmo da menina eu recordo-me de ver, Um TSURU. O mais ordinário dos origamis, leve que nem um pardal, mais melhor bom que os da feira da cordoaria, que os pardais das Áfricas, que os congéneres do Japón, que os melros de Entre-os-Rios. E assim, bateu as asas e levitou sobre mim e sobre Ela, disse "olá, o que é que te aconteceu ao pé que está todo quilhado? e eu respondi - "oi, não foi nada", estasiado pela mais que muita definição e rigor de seus traços em 1080p. E depois? Depois, só tive tempo de cair para a frente e esmagar o meu crânio por de entre os seios roliços e rosados da minha cliente e perdi sentidos e sentimentos, revirei-me nesse espaço sideral, bati as minhas asas pelo vale que se estendeu sem fim e pus-me no caralho, leve que nem passarinha, tão morto que nem me lambia, mas satisfeito.
Muito satisfeito.

# cachorros quentes

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

ORI ORI ORI! 1

Estive enfiado no covil durante vários dias, semanas, horas sem fins nem ínicios, segundos em que a vida estagnou num segundo plano, numa redoma de vidro baço e manchado com bolores e dedadas pegajosas. Interessava produzir, reproduzindo slides e métricas das proporções dos rectângulos de oiro. Comiam-se restos dos restos dos dias anteriores, os pratos atulhavam-se na cozinha, o sofá era a cama, a cama era secretária, a retrete era máquina de lavar, a garganta estava seca de tanta ânsia e já não me recordava do som que as minhas cordas vocais produziam pois nunca mais falei com ninguém sobre alguém ou sobre alguma coisa. Um vazio total, de tudo e de qualquer coisa, funcionando ao rumo dos vagares e dos tiques nervosos, no número três da rua da torrinha, torre celestial de contacto com o aparente stress localizado de uma moleirinha sem razão.
Até que acabei quando dei por mim, e olhei pra mim acabado, acabando.
Fiz tudo aquilo que tinha de fazer e ainda mais alguma coisa que não era necessária mas achei que por motivos deveria ser feito estando tão da perfeição que tanto procurei com alento e dedicação, sem olhar a meios e sem tentar compreender o que havia ficado pelo caminho. Devia entregar a encomenda. Incluí metade da minha mão direita e outro terço da alma no processo, faz parte, acho eu, do que todo o bom trabalhador faz para com um bom compromisso de trabalho.
Enquanto olho para a televisão a debitar milhares de palavras e silabas e metáforas inteligentes por segundo quadrado, fumo um cigarro e olho o vazio do infinito que se opõe a mim. Estou exausto e ao mesmo tempo ultrapassado por um alento gigante, do género de alentos que as pessoas têm quando acabam ou começam a fazer qualquer coisa que dignifique adquirir a sua própria existência -jogando ou não no Balazar- , que lhes diga "estivestes bem", que lhes faça meter os tomates de fora da camionete feita janela e berrar para o mundo que porra é esta que não é porra nenhuma mas me faz soltar todas as gargalhadas cheias que já dei no Mundo. Ya, afinal era isso, a fidelidade fotográfica da minha existência que enchia de capacidades e probabilidades de sucesso e tudo o mais a que tinha direito.
A coluna emitiu um choque que me arrancou do cadeirão de pele escura e a cheirar a couro de consultório de oftalmologista, nafetalina e mofo incluídos e lembrei-me que estava parado com as cinzas espalhadas pela ganga das calças abaixo, sentado que estava e de boca ligeiramente aberta, como quem cola depois de uma directa, ou depois de uma boa punheta, ou de um bom final de filme de bollywood. Bem me parecia que não saia de casa há quilhões, estava taralhoco de todo, pasmaste zé?! Disse que Não bem alto e colei com UHU os pedaços de massa encefálica que havia deixado descolados pela carpete da sala.
Iluminado pela encomenda que carrego nas mãos, desço as escadas a correr, galgando de três em três os cobertores em marmorite esverdeado cor de musgo, escorregando aqui e ali na junção com o espelho e, mesmo antes de chegar ao último degrau, alias, ao primeiro, foge-me o pé-direito, aquele que é cego e remata sempre para o terceiro anel, unindo a minha cara ao frio do desgastado pavimento de entrada. Olá, estás bom? pergunto eu assim de lado, com um sorriso amarelo em metade da cara e a outra metade vermelha da pancada. Sa foda, pensei eu. Siga a marinha, que já se faz tarde. Cuspi os dentes para a palma da mão e guardei-os no bolso das moedas pretas pequenas. Mais tarde, quando fosse rico e novo, poderia dar-me ao luxo de os banhar a ouro e de fazer um par de brincos com eles.
Lá fui eu a subir a torrinha, gás colado e manco do pé esquerdo capaz de ver entre a penumbra de um ínicio de manhã de inverno, qual ao certo não sei, entre risos e berros, alcoólicos anónimos que prezo ver com euforia e sangue quente a jorrar pelos olhos. O burburinho das pessoas que tem trabalhos normais, que tem horários e pessoas que as esperam pacientemente dia após dia no conforto de um lar normal, por de entre as colchas rendadas e as porcelanas de rapozas e cães de caça no hall de entrada, normal.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

INCESSANTE GUADALAJARA p.2


De qualquer das formas, voltando ao assunto, ao tópico, ao conto sobre este pedaço de carne tatuada, suada e amolecida pelo sol, estava eu ali encostado, apreciando a movida dos subúrbios, quando recebi um pedido. Central: “60 Degollado. Algun coche?" não era bem a minha praia, mas ao invés do triste e terreno cabaret e do cheiro a malagueta torrada, ganhar a vida era o que constava na lista de afazeres do dia; "132 Rámon escuto! voy pronto". Rodei a chave, segui em direcção à downtown, ácidos ecstasy coca charros e noite e precisava de música a condizer. Carreguei no forward, estava farto da Mariachi FM, aqueles artistas de bigode nunca mudam o reportório. Estava mais numa de música índia, cena europa, américa, cena anglo-sáxonica, frança espanha e tudo. Era da moda, dava prás contas e as gordas normalmente apreciavam. Lalalalalalalalala e num instante a vida ganhou outro sentido, tudo flores e discos voadores e coisas lindas e cores maravilhosas do outro lado da janela. Era da música ou era da fuga aos subúrbios? Pouco importava, o transito caótico sorteava o acaso à sorte de buzinas e calcadelas, encostões de pára-choques, encostos de ombro, encostos de peitos, tudo valia, e a minha música maravilhosa ia saindo dos ranhosos speakers estéreo que havia comprado por meia dúzia de pesos a um ladrão amigo que os tinha roubado a outro amigo ladrão, e como ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão, perdoei-o a ele e a mim, ficando assim entre nós o que jesus e nosso senhor não tinha tempo nem paciência para saber ou resolver ou julgar. Umas colunas estéreo, logo Ele que andava tão ocupado ia lá querer saber de tamanha ninharice. "all the other kids", e lá ia eu lançado, que nem flecha, com uma belina infernal, pela Javier Mina abaixo, virei para a Avenida de Juárez e fui directo ao ponto marcado. Restaurante "El Globo". Estacionei, olhei à volta, não era normal esperar numa cidade como Guadalajara, muito menos a meio da noite, o trânsito começava a cobrar alto e tempo era dinheiro. Mirei o taxímetro, abri nova conta com horário nocturno, sempre me dava mais uns quarenta por cento, e caso o muchacho não topasse, beautifull. E começou aquela música na rádio, nem era indie nem era porra nenhuma, era do rock, pesadão, teso, forte e feio a rasgar aço. Arrotei o burrito, saquei o palito da camisa e palitei como se não houvesse amanhã. Os meus Rayban davam-me aquela pinta, estava na merda, mas no auge, se é que me entendem, nem eu sei muito bem explicar, mas sim, aquele arrepio na espinh... paaaaaaaaah!
Centenas de estilhaços invadiram o habitáculo, cortando a minha pele já de si triturada de bechigas em várias e finas camadas de outras peles avermelhadas tipo carne picada, o susto por pouco fez-me arrancar o canino à palitada, cortei a gengiva, os óculos fugiram-me do rosto, o coração saiu pela boca, mas o rádio continuou a tocar, aquele metal incandescente e venenoso, mesmo cru e badalhoco, e eu ali sentado, com a calça molhada de chichi e sem que um feijão me coubesse. E como nunca há duas sem três nem duas sem uma, um individuo apressou-se a fazer-me companhia no lugar do morto, que ainda estava vivo, e apontando uma glock polida e bem tratada, da qual não constavam sinais de "R E P L I C A" adornando o seu chassis leve e resistente, me disse "Podes seguir em frente, pé ligeiro e cautela". Ainda estava eu a recuperar do cagaço, suado que nem um frango quando vi a navalha a reluzir o sol do último segundo do último dia do último momento da única e escassa estupidificante e nervosa vida, e o individuo magro e de pele clara, cabelo cor de cenoura, óculos à John Lennon e sotaque de gringo me diz: "esta não é aquela música rock´n´roll filha da putice daqueles brits raçados de pitbull mestiço africano?" ao qual eu respondi, "São, tocam pro mundial, mas a outra malha deles é melhor. Mais negra." Nesta fase da conversa, convinha ser simpático, visto ter-me partido o vidro do pendura, entrado sem ser convidado, e ter feito sabe-se lá o quê lá atrás onde o fui apanhar, cheio de folia e ar. Mas algo me dizia que não tardava muito em saber as respostas aos meus teoremas e teorias da conspiração e já que quando era miúdo achava que essa era a melhor parte, a de saber as respostas às perguntas que sempre quis ver respondidas. Posso dizer que estava a morrer por saber mais!
Galgando passeios e avenidas, Guadalajara sorria para mim, a troçar da minha sorte, nula, logo eu que só queria trabalhar e continuar a minha rotineira e pacata vida mundana, abraçada de todos os sonhos que nunca quis para mim, dizendo adeus a todos aqueles lá ao longe já há muito se haviam tornado meros devaneios infantis. Prometi que se me safar desta, prometi mesmo, até cruzei os dedos enquanto agarrava o volante com os guizos mingadinhos e escondidinhos entre as virilhas e as cruzes e as caveiras a olhar para mim com cara de tanga lá de cima do alto do retrovisor, me ia uma pessoa ainda melhor, tentar voltar a ir à missa, jogar na lotaria, comer menos gorduras, fazer mais exercício, vender a merda do táxi, endi...
ouh!
"Vais continuar agarradinho à tua alma como se outra não tivesses ou vais fazer um bocadinho de conversa de sala ó mal educado? As visitas são para se receber bem!" ao que eu respondi "A chaleira está partida e a cafeteira está sem água, mais alguma coisa que deseje neste momento caro convidado que me partiu o vidro do táxi, entrou sem pedir licença, me apontou uma arma à moleirinha e me está a "sequestrar" temporariamente?". Ah lata do caralho, cara de cu de cenoura mal descascada... "Até ver, sou eu que aponta a arma e és tu que tens a arma junto à fonte, por isso, baixa a bolinha, guia com calma que esta merda não tem airbags e o cinto mais depressa nos decapita que ampara o tombo. Continua a seguir para norte".
Ai Guadalajara, tão bela me pareceste, em slowmotion, slide by slide, side by side, a correres do meu lado esquerdo, com o sol de poente a aparecer interruptamente na malha regular dos bairros dos ricos, outskirts americanizados, à espera de um sonho, não do meu nem do teu, do deles, dos outros, porque o meu, naquele momento passava por uma noite escura e sem pinta de lírica nocturna, ya, escura como o caralho, breu infinito e eterno, sem mesmo acreditar que iria conversar com Alpha e Omega em poucos segundos, ia apenas, para outro lugar, ou lugar nenhum, vazio celestial.
Mas ao que parece, ainda não fui. O resto? Falamos de bola e política, sendo que eu, muito moderado, disse que sim a tudo e acho que concordei com muitas coisas que o cenoura disse, nem era muito burro, nem sequer o posso julgar assim à primeira, estava apenas a fazer o trabalho dele. Estava tudo bem até um carrinha cor de melão maduro ter passado um vermelho e espetado uma grande pancada do lado do morto, que estava vivo até então mas para delírio da plateia passara a morto num ápice, degolado pelo cinto de segurança e com um tiro de glock na barriga, tripas a treparem calças abaixo, todo borradinho na sua própria gosma. Azar do caralho, nem me parece mau diabo, mas também não assumiu bem o papel de riding shotgun, primeiro porque estava com um revólver, segundo porque não me estava auxiliar e terceiro e mais importante, não estava suficientemente concentrado para não se perder com politica, gaja e bola e fazer o trabalho dele. Limitei-me a desapertar o cinto, estiquei as costas em vez do pernil, e quando ia sair do carro, meia dúzia de indivíduos encapuçados fizeram o favor de adormecer com uma pancada seca nas traseiras da nuca.
Agora? Presumo que esteja numa cave qualquer, espancado até ao tutano, nu, e não tarda estarei do outro lado.
Se tenho pena? Sinceramente, estava com mais receio de chegar a velho com Alzheimer.. comi muita carne, vi muita coisa.
Amanhã há mais.
Que sa foda o Armaguedão, esta merda é um inferno.


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

INCESSANTE GUADALAJARA p.1


Está escuro. Um ruído em constante pronunciação ecoa no meu ouvido, agudo e chato, assim me estala os tímpanos e me rompe a concentração. Não sei por quanto tempo dormi, nem sei que porra estou aqui a fazer, deitado e amordaçado, com o cimento a romper-me a nuca e as ratazanas a troçarem de mim. A cabeça está partida em dois, lambo os lábios e sabe-me a sangue fresco que ainda percorre os espaços entre a barba espessa e farta que me envolve. Não tenho tido grande sorte, grande vida, ou merda alguma, não têm sido dias fáceis, não me tem corrido de feição, mas também não é que fosse caso para tanto. Hoje exagerei, ou exageraram, ou exageraste, Cristo que já não olhas por mim há algum tempo, aliás, Eras que já ganharam pó de tanto desconcertante consolo abandonado.
E que fiz eu? Ou de que é que me lembro?
Hmmm.
Estava adoçado ao encosto de tecido rompido do velho mercedes C 190 amarelo e preto, interiores com o falso brilho dos produtos de limpeza auto, as caveiras e cruzes e cristos e avés marias a penderem do retrovisor, o rádio a tocar baixinho na Mariachi FM, guitarra sobre guitarra, mambo sobre mambo. As putas amontoavam-se na rua adjacente, acenavam-me, diziam olá, cravavam um cigarro ou duas de conversa, conhecia a grande maioria delas, entre vueltas e vueltas, quecas consentidas no banco de trás com gordos magros velhos novos leprosos ou chulos de outras galdérias, com ou sem a minha ajuda, com ou sem pé de dança, interessava-lhes o meu banco de trás e interessavam-me uns pesos a mais nem que isso significasse fazer do taxi motel, melhor, das tripas coração, literal, pau para todo o trabalho.
Deu-me a fome, fui comer um taco ao "Godzilla", local de paragem de indivíduos pouco receitados pela sociedade em geral. Desde os tarados aos sequestradores, tudo por lá parava, como moscas a pousar em carne acabada de cortar, ou restos de lixo, ou esterco ao ar livre. Mas o fundo, e ainda que mal dizendo do serviço e espaço da lanchonete (já chamei piores nomes a espeluncas mais apresentáveis) eu sentia-me bem ali, aspirando a ligeiramente superior aos restantes, se por ser condutor de táxi, taxista de minha profissão? Não. Acho que era mais pelo simples facto de feitas as contas não ser mau diabo, não pactuar com o tráfico, não andar atrás de criancinhas (sempre preferi as mães), não alinhar em esquemas que trouxessem mal ao mundo, e apenas me importar fazer o meu trabalho. Se já chulei clientes? Se já cobrei o dobro a gringos? Se já fiz desvios sem sentido algum para ganhar mais uns trocos? Quem não o faz ou o fez? O inferno queima o quanto mais tu quiseres que ele queime e sempre que se arranja um pequeno bafo de ar fresco neste galinheiro onde quem não pica é picado, quem não empurra é pisado, quem não puxa não tem, só é burro quem não o inala. Desde que o Club Deportivo ganhasse para o campeonato por mim estava tudo bem.
Comi um burrito e um taco e bebi um shot de tequila, tiro no estômago fraco e débil que tenho. Fumei uma valente cigarrada, tossi várias vezes depois de inalar aquele veneno que todos os dias me vendiam, sempre sem brinde, mas nunca melhor. Era isto, dia após dia, e enquanto assim fosse, nunca pior. Antes mal e vivo, que fodido e morto. Já dizia um tio meu que entretanto morreu, bem fodido.
Guadalajara era assim, como em qualquer parte do México - uma luta constante, um fosso entre o bom e o mau, e quando se vivia no mau, no negro, na outra face, qualquer merda era boa para um hombre se distrair, arejar a cabeça, encontrar um sinónimo de felicidade no mais sujo e violento conto infantil. Meia pinga de álcool ou algo semelhante adornado de chilli com carne arrotado com sabor a têto.

...

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

KEEP ON ROCKIN!



Não tenho conseguido parar de esboçar sorrisos, daqueles de desarme, quando o que vislumbro é tão incompreensível que ultrapassa em excesso a bitola do considerável, do apropriado,do "natural", do dito normal. Mas ya, da normalidade já não há que esperar nada. 
É mesmo aquele engolir em seco, aquele burburinho do coração, a dita ansiedade, garganta seca, olhos esbugalhados, maçãs do rosto franzidas. 
É como a vergonha alheia, até parece mentira.
Aquele "foda-se" baixinho.
Como diria o Greg Graffin, somos personagens de estórias mais estranhas que a ficção, num enredo cheio de horizontes longínquos polvilhados por "DTs"  seats Ibiza dolce gabanna férias nas caraíbas golos superbocks bacalhau auto-estradas ppp´s estádios expos cabazes família, nóbeis,FMIs, segredos e pesos pesados, descritos por escritores de visão deturpada que navegam águas calmas, durante noites de luar, batendo teclas sem consequência, cosendo as linhas de contos e paus bafejados pelos ventos bávaros, enquanto bebem Don perignon e puxam uns bafos de charuto porque a purple haze foi roubada por um corsário das terras-baixas. O convés esse, segue viagem vazio, não apenas de mercadoria ou de especiarias e tesouros de além-mar nessas águas internacionais e globalizadas, leve que nem um passarinho inocentemente ludibriado com a falsa primavera dos primeiros dias de janeiro, com um tremendo nulo de ideais e valores, numa puta de uma Náu desiquilbrada, a pender para um dos lados, de velas-fechadas e sem vivacidade, que a cada milha naútica que sofregamente percorre, se afunda mais uns centimetros na austeridade das marés. 
Mas o melhor desta Nau, são as matinés. Durante as tardes, em alto alto mar, é projectada na vela esquinada e dobrada, todo o corre-corre de aeródromos, offshores, sacos azuis, freeports, sucatas, licenciaturas, escutas, negócios da merda, merda de negócios, desde os mais preguiçosos até aos piegas que circulam, por aí, em Clios. 
A bandeira essa, vai batendo contra o vento, com o vermelho trocado pelo verde e as esferas de cabeça para baixo.
E essa comédia de cariz trágico, com um enorme teor de ficção redigido pelos melhores dos melhores dos romancistas da nossa Nação, vivos e mortos, os de hoje e os de ontem, vai se projectando nos blocos informativos das manhãs das tardes e serões e a impotência é tanta que e recordam os tempos de pequeno em que me assustava com a televisão, com os vilões e os extraterrestes, com os feios porcos e maus e a minha Mãe pegava em mim, fazia umas festinhas na cabeça e dizia "não fiques triste, é só um filme".

Neil Young -  Rockin' In The Free World
There's colors on the street
Red, white and blue
People shufflin' their feet
People sleepin' in their shoes
But there's a warnin' sign on the road ahead
There's a lot of people sayin' we'd be better off dead
Don't feel like Satan, but I am to them
So I try to forget it, any way I can.

Keep on rockin' in the free world,
Keep on rockin' in the free world
Keep on rockin' in the free world,
Keep on rockin' in the free world.

I see a woman in the night
With a baby in her hand
Under an old street light
Near a garbage can
Now she puts the kid away, and she's gone to get a hit
She hates her life, and what she's done to it
There's one more kid that will never go to school
Never get to fall in love, never get to be cool.

Keep on rockin' in the free world,
Keep on rockin' in the free world
Keep on rockin' in the free world,
Keep on rockin' in the free world.

We got a thousand points of light
For the homeless man
We got a kinder, gentler,
Machine gun hand
We got department stores and toilet paper
Got styrofoam boxes for the ozone layer
Got a man of the people, says keep hope alive
Got fuel to burn, got roads to drive.

Keep on rockin' in the free world,
Keep on rockin' in the free world
Keep on rockin' in the free world,
Keep on rockin' in the free world.



sexta-feira, 10 de agosto de 2012

EM CANELAS HÁ UM TANQUE

E para lá chegar é preciso guiar como quem guia o mesmo tempo de quem vai para o Porto, pelas curvas do território, sempre a subir, passando as termas, virando na torre, ao passar da curva do penedo, com um farol avariado e outro a funcionar, vamos correndo o asfalto como se de dia de tratasse, não fossem já estes vinte e quatro anos pautados por viagens idênticas, muito mais que só no Natal e na Pascoa, sempre sempre que há vontade de cheirar o eucalipto e tomar um sumol no café central.

Depois de estacionado, deixam-se as tralhas pela casa, distribuem-se beijos e abraços de meia noite, o guardião do espaço escuro chegara, e com ele veio também a vontade de despertar. No café central, há sempre mais um café para ser tirado, nem que o chão esteja já todo limpo e as cadeiras todas arrumadas e a maquina de tabaco desligada e os neóns apagados.
Num desses dias encontrei o Tiago, e foi bom conversar sobre os verões de Canelas, dos jogos da bola no pelado do Canelas Futebol Clube, das idas à fruta, das corridas pelos montes abaixo, pelas jogatanas de mastersystem e pelos banhos no tanque. Foi porreiro lembrar o acidente, talvez noventa e quatro, noventa e cinco, em contra mão, estrada fora em direcção à chapa branca do Ford Escort que não vimos a desfazer a curva na mão dele.

E nestas noites de retiro, liga-se a televisão digital terrestre, deixando os documentários da dois soar pela sala a cheirar a fumo da lareira apagada, e de computador ligado, aprecia-se o silêncio lá de fora, quebrado de quando em vez pelos carros e motas lá da terra.


É reconfortante saber que podemos sempre entrar no portal do tempo e ir até Canelas, comer um arroz malandro e ficar com os dentes entranhados de fios de frango estufado.


Deftones - Beauty School

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

NOW WE CAN WALK



Podes ir lá bem longe,
podes até ir bem ali ao lado, aqui bem perto, longe de tudo e perto do que é teu.
Podes até nem sair do sítio, permanecer no lugar, deixar sempre tudo passar.
Guiar no lugar do pendura, pendurar-te no lugar do motorista, ver o tempo rolar, esperar pelas palavras certas.
Mas sem dúvida, que se não bater no núcleo duro, não arrepiar caminho ou criar mossa na espinha, não será certamente qualquer coisa digna disso mesmo. Qualquer coisa.
Talvez amanhã, talvez amanhã, seja frança espanha tudo, mas por agora, é canelas, é vila gualdina, é bustelo sessions, é luzim sessions também, é café paiol, é EP, é minis a cinquenta cêntimos, é brincar aos arquitectos, é acordar tarde e deitar tarde, é andar com a barba e o cabelo por cortar porque o Costa fecha ao meio dia, é fazer de conta que já somos adultos e é cem por cento ao contrário nos cem por cento que tens sempre como certos por muito incerto que todas as verdades absolutas têm por norma parecerem ser.

E parte de tudo isto, é teu também. Já lá vão oito anos, desde 2004, dezassete de julho salvo erro, que tiraste bilhete, e ainda assim, vou-te vendo aqui e ali, num ou outro acto, numa ou outra conversa, esse "não entres em paranoias", meu, fazes cá falta de vez em quando, para podermos comer sandes de presunto lá na varanda de casa, contigo e com a Lena antes que o Berto chegue a casa, mesmo quando os palitos são apanhados à mão sem que a ASAE dê conta. Ainda estou à espera daquela mega jantarada e ainda me deves sessenta cêntimos daquele perna-de-pau. Sa foda.

Um forte abraço, onde quer que estejas, demorei a escrever-te, mas bem, sei que o Alfa e Omega têm internet sem fios, por isso, ficas já a saber, que nestes últimos oito anos todas essas lições serviram para ir à Holanda ver as planicies e os canais, ir a Coura, ouvir Nirvana e aproveitar da melhor forma.

É tudo menos Banal.

R.O. - Now we can walk


every breathe we take
like it was the last one
every sip we take
we could drink the ocean
..
a million miles away, a billion stars a day







sábado, 30 de junho de 2012

O FRÁGIL



O céu estava limpo.
Sentia a textura do alcatrão a percorrer a borracha mole dos pneus da bicicleta. O vento vinha ao meu encontro, trespassando-me; estava parado, mas eu movia-me contra ele. O sol estava a pique, os pássaros voavam em bando, as pessoas passeavam sobre a rotina maquiavélica que tomava conta do quotidiano. Planava harmonia: dava vontade de fechar as pálpebras, puxar o ar bem lá dentro, encher o peito e deixar soar notas bem altas de êxtase e de alegria - abrir os braços e encaixar na dinâmica brisa.
Por momentos desviei o olhar para focar melhor o balão vermelho que se soltara da mão de uma criança. Depois travei.
Agora estou sentado numa das muitas cadeiras da esplanada que envolve o pequeno lago dos patos. Os patos parecem-me distantes, flutuam numa dança ainda mais desastrosa e tacanha que a habitual. E sinceramente não consigo perceber o seu número - tem segundos em que conto seis, minutos nos quais me parecem dezenas. Procuro nos bolsos uma réstia do pão do pequeno-almoço para lhes atirar mas apenas meia-dúzia de moedas me acompanham.
Mas não é isso que aqui faço sentado, sobre a sombra, à espera do meu sumo natural de laranja. Para dizer a verdade, não recordo mais o porquê de me encontrar aqui sentado. Os sons das pessoas que à minha volta deambulam parecem-me murmúrios de um tempo distante, uma confusão que não compreendo porquê, não pertence a este lugar. A ligeira impressão de estar em dois lugares em simultâneo, num contexto cruzado. A imagem transmite-me algo que o ambiente que me envolve não traduz. O sumo nunca mais vinha e eram horas de ir, não me recordo da transparência pálida do relógio, mas sabia que já havia demasiado tempo que estava sentado a assimilar as dinâmicas que à minha volta se sucediam em catarata. Por instantes reparei que os gestos assumiam velocidades antagónicas, como se para uma quantidade de energia aplicada outra equidistante e antitética  da primeira fosse a resposta dada.
Levantei-me, comecei a caminhar sem pressa nem rumo. Encontrei-me sozinho no meio de uma dessas praças da cidade, com um cavalo de ferro montado por um ilustre qualquer no seu centro, a sua difusa sombra desenhada no granito rijo do pavimento. Julgara eu que o céu estava limpo e sem nuvens, mas a luz parecia começar a escassear, um tom cinza varria o todo.
Quando dei por mim estava ofegante, a corrida massacrava o asfalto, as pernas martelavam que nem pistões para cima e para baixo, e eu continuava a correr, desalmadamente perdido num vazio que me consumia, agora e sempre, dia sobre dia, hora após hora, no negro da noite ou na luz fosca dos dias. Os poros dilatavam e expulsavam um ácido suor, a camisa colava no peito, o peito colava no coração acelerado e descompassado, os meus olhos semicerravam para melhor ver ao longe mas continuava sem compreender além do que via realmente e pior do que isso, não atingia o porquê de tamanho sprint. Mas sabia que esse era o caminho, que tinha de continuar a correr, que não havia outra saída senão aquela.
Um intenso ruído manifestava-se atrás de mim. Olhei sobre o meu ombro direito, entrei num estado de pânico ainda mais avassalador e vertiginoso. Não conseguia contar quantos compunham a massa disforme e caótica que se movia na minha direcção. Era tudo demasiado real, numa luta que travava comigo mesmo sem eu próprio saber. Atropelavam-se, escalando uns por cima dos outros, outros por baixo de alguns, a maioria correndo como loucos, arrastando em si uma força que se multiplicava exponencialmente a cada metro percorrido. Merda! A dor de burro estava a tomar conta da zona abdominal direita, era sufocado pelo ar que me enchia os pulmões, mas seria ar ou qualquer outra coisa? Conveniente. Empatava-me a respiração, aniquilava o meu poder de decisão.
Estava finalmente perdido numa ruela calcetada e que afunilava em direcção a uma enorme escadaria em duros blocos de granito e da qual vislumbrava uma parede azul ciano, bem lá no fundo, ainda distante de mim. Galguei as escadas, uma a uma, duas a duas, interessa pouco saber como, mas parecia-me mais uma escada rolante, rolando em sentido contrário ao meu. À medida que ia tentando manter a velocidade, sentia que já não mais sentia as pernas que me guiavam, estava trôpego, adormecido no meu mais ínfimo interior, tentava agarrar o corrimão das escadas que escalava mas falhava sempre, e sempre, sempre me desequilibrava mais um pouco.
E eles continuavam a correr atrás de mim, e já não conseguia mais contar nem uma só cabeça que a compunha - era um conjunto heterogéneo a polvilhar, difuso, um borbulhar de carnes e intenções, racional mas ao mesmo tempo grotesco, e o pior é que já preenchia tudo o que havia ficado para trás, causando um desespero que me apertava não só contra a corrida que me levava ao plano azul final, como também espremia o meu interior asfixiado, num constante martelar ruidoso que consumia bem lá dentro, no fundo de mim, no mais vasto e sentido medo.
E corri. Corri como se o amanhã não fosse uma certeza, mas algo pelo qual tinha de lutar naquele preciso momento, momento que já me esquecera qual era, qual o seu sentido, salvação ou desgraça, vitória regada a lama e sobressaltos, derrota recalcada pelos milhentos pés que me seguiam sem desarmar.
A cada passo que dava, mais me afundava nos paralelos escorregadios. A chuva começou a cair e juntamente com o suor que me escorria na testa e que me turvava a visão, repuxos lacrimais fugiam da íris, a saliva jorrava e relançava-se no ar pela minha boca entreaberta, mas de onde não saía uma única palavra. Era tempo de correr, de me salvar. Porquê? Não me recordo. Mas sempre gostei de correr, sempre que roubei um apalpão a uma miúda qualquer lá da escola, sempre que tentei correr até à linha para cruzar para golo, sempre que me acordei mais tarde para apanhar o autocarro ou sempre que me vi perdido no meio de meia dúzia de pequenos delinquentes que me queriam levar os trocos e o telemóvel. Não era este o caso agora, mas através do senso comum e do mágico poder da analogia, penso estar em condições de dizer que esta era uma bela altura para correr.
Uma imagem sobrepôs-se à estreita rua, um baloiço repousava num mínimo jardim, tão mínimo que parecia não ter espaço para o gesto prolongado e suave que o baloiço tomava. Foram instantes apenas, incontáveis como tudo o resto, tão depressa vieram como foram.
E o azul era cada vez mais intenso, os murmúrios e berros e ruídos e caos lançados sobre mim, vindos de trás, já quase roçavam no meu ouvido, pareciam até tocar-me nas costas, desviarem-me as pernas. A camisa era já um trapo que colado a mim manifestava e simbolizava ainda mais o desespero de uma fuga não anunciada e na qual me vi sem assim o prever. Queria-me lembrar de alguém, de uma imagem, de um rosto, de uma palavra, mas só faziam eco as notas industriais entrelaçadas em pianos e sons do fundo do túnel a ressoarem nas paredes do meu crânio, a partirem cada pedaço de textura encefálica, desespero de um grito que teimava em não sair. Havia passos que levavam metros, outros pareciam apenas superar meros centímetros, um vai e vem descompassado e irregular, uma espécie de cavalgada em terreno perfurado sobre uma incessante carga de água que varria o chão e deixava no ar o cheiro a terra molhada.
Um bombo que me perfurava, um ritmo louco que me mantinha numa dramática e furiosa fuga, e todos eles mais próximos, tal qual o fim da estreita e claustrofóbica rua que espezinhava, e com esta, o muro azul ciano que agora, com a curta distancia que nos separava, se apresentava sobre o tom verde água, estando eu sobre a água que caia sem dó, a um ritmo amplificado pelo intenso palpitar de tudo o que me envolvia.
Uma nova imagem se abateu sobre mim. Um miúdo caminhava pelo passeio fora com um gelado na mão e à semelhança do que nesse momento se passava, também o miúdo não conseguia pronunciar qualquer palavra perceptível. Ao andar, uma perna atrapalhou a outra e na ânsia de agarrar o gelado, a testa foi de encontro ao cimento em esquadrilha do passeio.
Mas eu ia salvar-me, trepar o muro, ganhar tempo, escapar de um tsunami de gentes que teimavam em não me largar e que a centímetros de mim, numa infernal e estridente parafernália de sons e ruídos, me despedaçavam aos poucos, retirando-me o pouco equilíbrio que me restava. Vertiginoso escape de sentimentos e adrenalina, já não ouvia mais a minha silenciosa respiração, o ambiente era demasiado alto, numa escala anormal e sem proporção aparente.
Escorreguei finalmente, e ao contrário do que a minha mais infinita vontade desejava, réstia de esperança encharcada em sangue, suor e lágrimas, o sentido descendente contrariou o ascendente e o meu corpo projectou-se na direcção do verde-água do muro. A rugosidade da pedra pintada fixou-se em mim, e a minha retina reteve-se, bem aberta, no encontro entre o meu crânio e a barreira que a si se empunha, esmigalhando em pedaços geométricos que em nada se assemelhavam à clássica massa disforme e de cor rosa que julgamos compor o cérebro quando uma situação deste género acontece.
O ar entrou de rompante, preencheu-me, abri uma segunda vez os olhos focando o infinito.
Uma claridade imensa me suprimiu num cruzamento franco entre o melhor orgasmo e o espasmo do vómito que se acumula e anseia sair, possuindo-me assim por completo, num arrepiado esgar da espinal medula que me elevou no ar, os cateteres rasgaram os braços e esse emaranhado de fios transparentes e avermelhados, como cabelos, envolveram-me no seio do tecido branco que me adornava. O vermelho pontilhou o algodão, pintas e mais pintas de uma cor forte e viva, era aliás, tudo surpreendentemente real e intenso, ainda que desfocado e sem profundidade.
A espuma percorria-me o canto da boca, deslizando sobre a vasta barba seca e áspera sobre a qual uma sonda repousava. O ar era puro demais: fresco como o gelo, cortante e redentor.
Estava sozinho e fechado num espaço esverdeado e baço, num vácuo no qual eu sugava o seu interminável oxigénio e as pétalas secas de um vaso repousado na pequena mesa ao meu lado assistiam impávidas e serenas, ao meu alucinante renascimento.


Um Conto de Ivan Coelho




para um concurso,

algures em 2011.

domingo, 24 de junho de 2012

MONTE SINAI

Estrebuchei entre o edredón na sala, sobre o colchão, à frente da tv que ficara ligada nos desastres de aviões do National Geografic.
O Cruz acenava-me com wugazi a tocar no meu celular, era o ricardo.
- Tou! como é?
- É para ir. Estou na Galiza, quatro piscas.Acordei-te?
- Não. Já vamos.

Meio morto e meio vivo, arrepiei caminho por entre as luzes amarelas, os reflexos dos semáforos no alcatrão, os néons, os anúncios, o deserto urbano, desliguei a sofagem que já ia em quarta vitesse e apanhei um leitão e dois coelhos pelo caminho.

Iamos à vandoma, fazer negócio, comprar artigos de marca, frança espanha e tudo o que tinhamos direito.

Estacionamos perto da Batalha, vesti o casaco de ganga, puxei do carapuço, larguei a carteira no "tabelier" e peguei em meia dúzia de moedas para meter ao bolso. Descemos as ruas, passamos pelo Monte Sinai, bom presságio. Chegados às fontainhas, percebemos que ainda era cedo e a caravana estava para passar. Havia que esperar, olhar para os montes de canetas e canecas e porta-chaves e ferros de engomar e VHS e discos e cds mapas e livros de todos os jeitos cores e feitios, cacos da sala de estar, pratos da mesa de jantar, peças de cerâmica e cristais baços do tempo, havia lugar para tudo, sem estarem de nível com a inclinação ou de nível com a descida financeira que se avistava. Eram trapos, eram rostos escondidos entre plásticos e cobertores, mingados pelo frio, pela vontade de fazer uns cêntimos. Rostos apagados pelos tempos, esquecidos pelos outros, em segundas e terceiras oportunidades que davam aos mesmos e às mercadorias, trocas e trocas, vendas e revendas, prendas de casamentos que já haviam vindo e ido, tal qual os euros da carteira.
E havia os outros, os do rádio que nunca tinha sido usado, da máquina de barbear sem caixa porque tinha apanhado chuva e estava húmida e foi para o lixo, ou do jogo que estava dentro da consola, dos discos a dois euros que eram do Pai do outro, das colunas que ainda ontem tinham sido ligadas à televisão para ver o jogo de Portugal. Enfim, um sem fim de contos e estórias e fábulas artísticas, romanceadas meia hora após meia hora, até o sol raiar, até não haver mais força para aguentar, verdadeiros hinos ao lirismo popular, sem desgaste, sem uma pinta de mentira a pairar, sem vergonha ou hesitação. Era o que era, e o que não era, passava a ser.
Regateamos. Perguntamos. Conversamos. Até as seis da matina darem conta do tempo passar, já de dia, num carrossel de sobe e desces, pagando para ver, vieram os jeans e a camisola de um adepto croata que em dois mil e quatro se esqueceu de ir dormir ao hotel e ficou pela baixa, de calças para baixo e tronco nu.

Viemos embora, cansados que dói.
A ilusão é tanta, que depois de circulos e circulos encontramos aquilo que não fomos lá para encontrar, mas por força das forças, o que tem de ser tem mais força ainda, acabamos por levar, por meia dúzia de paus, animados pela poupança, pela oportunidade, pela sorte, e pela vontade de encontrar mais outra coisa que precisamos mas não sabemos. É isso, e bastante mais, é palpável, mas também é placebo.

Sabe a golo e como tal, Sexta-feira há mais.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

IF ONLY WE COULD FLY



Não há quem tenha feito mais.
Há quem tenha feito menos, ou talvez nem isso, toda a gente pregou um prego serrou com o serrote aparafusou com o berbequim da black and decker, colou com a cola branca, segurou puxou empurrou tirou barrotes e barretadas, ripas e ripadas enquanto a musica era ripada, fixou e empenou, nivelou e criou.
Há coisas incríveis, pela força de alguns, pela vontade de todos.
No inicio era um camião com madeira.
No fim, uma peça com imensos nomes gravados, de artesãos a carpinteiros, mirones, mulheres da fruta, homens do prego, serras em riste, suor em bica, bikini girls with pressureguns, todos ao molhe, fé no Deus do Norte.
Serrim no nariz, maçã encravada nos dentes, arroz malando no bucho e a pele queimada.
É como a volta a Portugal em bicicleta, mas melhor.
Ou como levar com a poeira do rally etapa de Abragão, mas melhor.
Ou como ganhar aos matraquilhos, mas melhor.
Ou como jogar ao esconde esconde e ficar até ao fim e esperar até rebentarem a bolha, mas melhor.
Ou como ir para a praia comer massa com atum e beber Alandra e se calhar ainda é melhor.
Ou como dar a volta ao mundo até milão e ainda é melhor.
Ou como comer um gelado debaixo de uma árvore numa tarde de verão, mas melhor.
Ou correr à chuva com o guarda-chuva debaixo do braço, sujeito a cair e partir os dentes mas ainda assim continuar a correr à chuva e a cagar para o guarda-chuva, e é melhor, acreditem que é melhor.
E ficar no escuro a olhar para o tecto e ouvir aquela música com uns sennheiser HD-25 II, talvez seja melhor.
E comer um pão com manteiga que o padeiro deixa pendurado todos os dias desde que me conheço, uns dias mais duros que outros, acompanhados pelo café da cafeteira que tem aquele sabor com mais de vinte anos, e ainda assim, tenho as minhas dúvidas que não seja melhor.

Basicamente, comer com as mãos, beber com as mãos em concha, escrever com uma bic, desenhar com os dedos, fazer bolinhas com escupe, saber as horas pelo sol, martelar pregos, serrar barrotes de madeira de pinho, erguer vigas e prumos e outras coisas, será sempre melhor que passar horas sem fim sem fazer nada disto ou a fazer todas as outras coisas que fazemos todos na grande parte dos dias e horas e meses e segundos e na vida e no mundo.
Todo.


Como diria o Zahovic ao Américo, Puta Caralho
(foi bom pra xuxu).






if only we could flaaaaaaaaa



segunda-feira, 21 de maio de 2012

DINOSSAURO JÚNIOR


No meio de uma aparente embriaguez, revejo os limites do cosmos, sentindo e palpando com as próprias mãos os confins de átomos e teoremas, sabendo de antemão que após tudo isto, apenas o pó nos aguarda.
E infeliz o pensamento, o de que há algo depois de tudo, ou nada antes de algo. Mas assim vivemos felizes e contentes com a próxima meta.
A fuselagem nao tarda em quebrar, as luzes nao demoram muito para fundirem, e no final a dentadura não tardará em desaparecer de madura.
Assim vamos indo e vamos vendo, olhando pelos seguintes, os que hão de vir, os que fomos em nosso tempo.
E tempo após tempo, iremos satisfazer o primordial desejo de conquista adornado pelo sabor da derrota. Sempre assim foi, e sempre assim será de ser, lei após lei, mudança após mudança, macacos sobre macacos, tentando ser mais que simios, falhando dia após dia, era após era, até Deus se fartar e partir esta porra toda.

A História diz-nos que nunca aprendemos com a História.



quarta-feira, 16 de maio de 2012

FORGOTTEN AND ABSORTED INTO THE EARTH BELOW



à noite, quando o asfalto reluz,

gosto de caminhar a essa hora, quando se vêem as fachadas dos anúncios e das varandas e janelas, quando se ouvem os cães a ladrar lá de cima dos pátios. Gosto de assim caminhar, auscultadores a debitarem palavras e mais palavras, o meu cão a seguir-me por perto. Dá-me gozo, gesticular sozinho, olhar para tudo aquilo que já olhei milhares de vezes e, ainda assim, me parecer novo. São pensamentos e palavras, actos e omissões, que nos percorrem o consciente adormecido pela inércia do diário, e assim, pé ante pé, sem mais ninguém por perto, vamos fazendo o rescaldo, o aftermath, das horas e eras que vivemos.
Comming back swinging.
E o prazer reside no sentimento de propriedade de algo que nunca será meu, a cidade, o bairro, as ruas.
Há na solidão da noite, no vazio do escuro, a falsa imagem de que tudo o que nos envolve vive e existe, naquele momento, apenas para nós.
Porque mais ninguém segue por perto.


smashing pumpkins - 1979

domingo, 13 de maio de 2012

THE OTHER SIDE OF MADNESS pt.3


Hoje ia fazer o percurso A, primeiro até ao Z, aquele no qual passamos pela esfinge, debitamos várias palavras no melhor inglês possível, falamos sobre tudo aquilo que nunca soubemos saber sobre o tema proposto, voltamos a esboçar mil sorrisos façanhas e teorias da conspiração sobre o maravilhoso complexo arquitectónico que calcamos. Mas hoje é um dia diferente, agora e aqui, onde me encontro, sinto que detenho a sabedoria para a resolução de todos os meus problemas, problemas que são meus e teus e deles, dos grunhos que iam comigo, um casal de Italianos estúpidos que só faziam perguntas ridículas e às quais eu respondia de forma mais ridícula recebendo em troca um acenar de cabeça de quem pouco pensa e muito diz. E sim, eles vinham comigo, iam viajar comigo até ao confim deste e do outro universo, porque após anos e anos a calcar este lugar, segredos era coisa que não havia. Já me havia decidido, aquando o percurso até aqui, hoje era o dia e chegara a hora de ir para outro lugar, can´t you see the signs?!
Pedi-lhes dois minutos, entrei num barraco forrado a ripas de madeira empilhadas na vertical de uma forma desconcertantemente tosca, puxei da papelada que trazia no bolso. Baixei as calças, sentei-me sobre o buraco, deixe-me relaxar. Larguei um bloco de cimento acastanhado, amassado pelos meus intestinos em direcção ao vazio.
Era só uma lambidela, só uma ponta desse músculo de sensações e papilas e acções e provérbios verbais e literais ia tocar no papelzinho, tão pequeno que nem para confeti dava, ainda assim, havia espaço para o sonic the hedgehog. Lambi o papel, lambi a mão, lambi o braço, lambi as unhas, lambi o peito, lambi as ripas de madeira. Senti o rodopio do furacão, o tapa na pantera, arreganhei a boca, puxei os lábios para fora, fiz caretas à minha frente sem espelho sem nada, abri a porta e a luz passou por mim à velocidade que ela gosta de ter, rápida como o caralho. E fui, pé ligeiro, sem cautela.
Seguimos pelos becos e estreitas galerias, cada vez menos luz, cada vez mais sombra, até que demos por nós perto do início da grande subida, o bilhete pelo qual todos anseiam pagar, a ascensão divina, o triângulo ancestral, a grande pirâmide. Um degrau, dois degraus, and so on, até que, para pura e simples estupidez dos que me acompanhavam, eu desloquei um dos grandes blocos de adobe, amassados pelas eras, e o maciço pareceu uma pluma nas minhas mãos. Podem entrar. Caminhamos sobre a poeira, na escuridão quase total, faltava uma tocha como nos filmes, apenas se ouvia o vento assobiar, aqui era bem mais fresco, mais claustrofóbico. O interior fazia lembrar um caleidoscópio, daqueles que se faziam no jardim-de-infância. Um grande amigo que um dia cá tinha vindo, e eu, sem mais nada para onde ir ou fazer, sem lugar onde cair morto, decidi acatar a decisão de seguir para o vazio, para onde esse meu conhecido fora um dia e um dia me havia dito que descobrira o âmago de tudo, o espaço sideral e multiplicado de uma sala que continha todas as outras, um lugar tão sombrio quanto esmagador, pelo silêncio, pela visão assombrada do interior invertido da pirâmide do faraó, diabo carregue o outro onde trabalhava.
No meio do rodopio, ouvia os outros dois burros a saltarem de alegria, estavam lá dentro.
Abri a carteira, tinha meia dúzia de tostões. Merda, não era suficiente para a grande viagem até ao paraíso. Ainda tinha guardado no bolso de trás das calças um pequeno seixo, de estimação, para situações como esta. Fui directo às jugulares, o sangue correu no meio dos ruídos silenciosos e profundos do espaço iluminado e vibrante, era uma bad trip à maneira, uma puta tão grande que nem senti pena das duas ignorantes almas que me acompanhavam até então, seus nomes anónimos, anonimato que me ajudou a superar a dor da perda, dos outros, não a minha, e sobre a qual apenas residia a minha vontade de perceber se ia para o além com mais uns trocos no bolso. No fundo ri-me bem lá no meu íntimo mais profundo.
Carteiras revistadas, chegara a hora de partir.
Envolto em tudo aquilo que me pertencia como memória de um punhado de pó que se chamava vida, agarrei-me aos tomates e saltei para o vazio da pirâmide, invertida dimensão de muitas outras, não berrei, segui calado porque calado normalmente digo tudo. Enquanto fui caindo no vazio, ainda consegui ouvir os pianos.
Um piano, dois pianos, três pianos, PUM!
Esperneei, cheio de farpas a cravar a pele, com o deserto na garganta, pintado em tons de ocre, cego pela luz, coberto pela chapa que escaldava, todo cagado da cinta para baixo, nu.

- So take a trip with me, to the other side of madness -
Cro-mags - The other side of madness

quarta-feira, 9 de maio de 2012

THE OTHER SIDE OF MADNESS pt.2


Mordi uma codea recessa com dois dias, bebi meio copo de leite, tentei não fazer barulho para não acordar o meu colega de quarto, o Samir, daqui a pouco pegava ele no trabalho, ser padeiro tem destas coisas, é como mandar farinha ao mesmo tempo que anda toda a gente a cheirar coca, same shit, different timmings. Ferrei o sono durante pouco menos de meia duzia de horas, pouco mais do que o necessário para acordar menos rabujento que o que a normalidade me acostuma, ensaiar um quarteirão de sorrisos inocentes e cativantes, mudar de roupa, passar água pela cara, comer mais um bocado do naco de codea que sobrou de há três dias atrás e apanhar o caixote amolgado barulhento e apinhado de gentes que normalmente o chamam de autocarro, sem AC. Pelo caminho, suo a camisa deslavada que levo, e mal salto fora daquela espelunca, retiro do saco de plástico branco imaculadamente guardado dia após dia, uma ourta camisa ainda a cheirar a amaciador. Há uma enorme tabuleta imaginária que se ergue por entre a poeira, limpa dia após dia, pela minha alma e pela dos outros, e que diz qualquer coisa deste genero "Bem-vindo à terra encantada". Enquanto leio isto, normalmente os meus ouvidos adornam-se de assobios, berros, sussurros, gentes que vão falando disto e daquilo, chamando a atenção de uns, orando ao alfa, berrando pelo omega, calcando os calos de outros, empurrando quem se à frente mete,e eu, no meio do turbilhão, como se do meu quarto às escuras se tratasse, vou indo e caminhando e abanando a cabeça, sempre sem largar os olhos do caminho, da frente, a ouvir um riff teso a ressoar nos timpanos sobreposto aos milhares ruidos atrás descritos.
Assim sim, vou embalado, qual míssil, qual torpedo, qual jacto de água lançado sobre a revolução, zarpando pelo bazaar de gentes e cores e sentidos e merdas a voar por alí fora, sentidos despertos, com a jarda toda a fluir pelas veias latejantes. Busco por um bidie no fundo do bolso cosido e recosido, puxo dos fósforos, acendo, puxo um bafo, puxo dois, e continuo por entre aquela massa disforme a que chamamos de multidão.
Um timbalão, dois timbalões, um mute, dois mutes, a 120 bpms e a manter aquela aura de destruição, enquanto eu me dirigia para as destruídas pirâmides e seus sonhos desfeitos, pedra sobre pedra, o tempo sobre o tempo, sorriso na boca. Saquei do meu cartão de guia falsificado pelo mestre que falsifica noventa e cinco por cento dos cartões de guia dos guias que por aqui andam, cumprimentei o meu colega de trabalho que estava já entretido a passar a mão pelo cu de uma Loira Americana ( era americana porque ria muito alto e tinha toda a pinta de que falava por falar ainda que falando como se falasse), dirigi-me ao pequeno quiosque em chapa da esquina, pedi um pouco de paan para mascar, apodrecer um pouco mais as gengivas e os dentes com aquele vício dos pobres.

terça-feira, 8 de maio de 2012

THE OTHER SIDE OF MADNESS pt.1



Abstraído, tão distraído que acabei por queimar a ponta dos dedos indicador e insurrecto com a beata que tinha entre nacos.
O pequeno e confinado espaço exterior reservado aos mecanismos de ventilação do "Faraó" pertencia a uma realidade paralela e flutuante, sobre dezenas de metros de distância da perfeita e mundana vida cosmopolita que se instalou na capital. E a flutuar, pairava sobre a ilusão do mundo ocidental, a crença cega nos deslumbres civilizacionais de neóns e Leds e tecnologia de ponta dos comuns mortais. Por entre a rede de galinheiro vislumbrava todo este frenezim, pontuado pelo ligar e desligar das máquinas, tal qual o ir e vir de um pistão de motor, oleado,maquinal, infernal. E esta visão prolongava-se por mais uma meia dúzia de quarteirões, até ao fumo dos escapes me fazer escapar a nitidez da vista, por entre volumetrias desproporcionais egrotescas transformadas pela apatia dos gases e das gentes, e eu, ali parado, no tempo no espaço visceral, sem me mexer. Nem a mais hábil façanha de Houdini roçou tal nível de fantasia. A minha vida apenas passa por aumentar o volume de som do canal desportivo ao mesmo tempo que me embrenho a empurrar no balcão martinis on the rocks, entre jacks e daniels, entre galdérias e artistas da bola. E por hoje era tudo, e já não era pouco. Troquei de camisa, a suja branca deu lugar a um branco sujo, de lavagens e lavagens de água sem sabonete, estava a chegar a hora de largar o ambiente soturno e saturado de horas e horas de tabaco expirado para um ar que já lá morava desde que me lembrava, a ventilação é só para fazer de conta, os filtros estão fodidos e o ar lá de fora melhor não é.Apanhei o autocarro de sempre, o das altas horas da noite, aquele que parava em menos paragens só porque sim.Gosto de atitudes extremas.Sim ou não. Os intermédios aborrecem-me. É sinonimo de tomates mingados.Nem muito grande nem muito coiso, assim assim.


terça-feira, 20 de março de 2012

WELCOME HOME



Há dias em que não há nada.
Há dias em que o cão ladra da mesma maneira, o café sabe ao de sempre, a comida está bem de sal como em todos os outros dias, o futebol joga-se às 17:30 no ringue de Santa Luzia, o irmão chega às 19:00 a Novelas, breaking down continua em streaming no tubo, o portfólio está quase quase feito e a noite chega e as horas chegam e vêm e sente-se o vazio de chegarem e partirem e de novo dia esperar de manhã.
Há imensos destes dias, destas ocasiões, nas quais me retiro e me coloco de mochila, nos confins da América do Sul, ou em viagens intermináveis em comboios nocturnos por esse Vietname fora, ou por de entre multidões na Praça Vermelha.. sempre sempre, longe daqui, com saudade daqui, com saudade do de lá de fora, com o sangue a polvilhar as guelras, a respiração ofegante de quem corre uma maratona sem se levantar da cadeira de escritório, de quem escreve e escreve estando lá e estando cá, vendo aquilo olhando para isto, reflectindo sobre muita coisa ao mesmo tempo que agarra o punhado de todas as outras que diariamente possuí.
Fechando os olhos, vejo os banhos de mangueira no jardim, ou a piscina de plástico azul remendada com pensos, as idas à ameixoeira, as cuecas na cabeça e os power rangers, os offspring a tocarem na garagem, o ghostclub.

"1º Quero ser boa pessoa. 2º Quero ser bom aluno. 3º Quero uma Megadrive."

E depois há os raros, aqueles que em cinco minutos nos poem a par da impar situação que nos oferecem, seja a poeira do deserto ou as infurtunas selvas tropicais, o chão desaparece por debaixo e continuamos no mesmo sitio e em queda livre, a escrever a escrever, a perguntar por mais, como se um portal para outra dimensão tivesse aberto em nós o desconhecido e a vontade de o percorrer, ainda que sabendo, por experiências prévias, que esses primeiros passos serão fatalmente intoleráveis e amargos, arrepiantes sussurros nocturnos que teimam em ficar.
E nesses dias, que jogamos ao bingo, ou ao totoloto, ou às cruzinhas, e vamos enganando os sims e os nãos, vamos empurrando para a frente a decisão de mudar ou não a vida que temos. Para melhor, ou para pior. Para qualquer outra coisa, lembrando do quão estática e previsivel ela parecera no dia anterior, e no quão revoltados pareciamos estar quando a pensavamos assim, parada, paulatinamente esperando que o buraco dimensional se abrisse.

Hoje um desses portais abriu-se.
Bom ou mau?
Sei lá se é o chinês se é o caralho.

Radical Minds - Welcome Home

sexta-feira, 9 de março de 2012

INDUSTRIAL

Trespaçando as trespaçadas paredes travessas, aversas à confusão das rotinas, adversas raizes de mato a adornam. O tempo cobra o seu lugar, e o burburinho do nada corrompe a atitude passiva do betão amassado esbarrado contra o ferro da ferrugem.
Os pneus parecem rir-se pela segunda oportunidade dada, vivem impávidos e serenos, perenes esculturas de borracha mole e cheirosa, polvilhando aqui e ali os espaços do vazio instalado.
É amorosa a fugaz relação entre o que fica e o que vai, entre o estalado e o partido, e, quase que inerente a tudo isto, um sorriso decadente e suave encaixa entre as marcas de óleo escuro e queimado deixado para trás.